Trilogia do Cavi - parte I: Vivendo pra sétima arte

domingo, 18 de abril de 2010

por Josy Antunes

A Cavideo nunca foi uma locadora só. Cavideo é como se fosse quase um filho pra mim. Um lugar que eu quero pessoas maneiras, amigos, não é só por dinheiro, é muito mais do que isso. Cavideo pode estar me dando prejuízo que vai continuar a existir. Quando o VHS e DVD acabarem, vai virar museu, mas vai continuar”.
(Cavi Borges)






Dentre os 55 filmes incluídos na programação do III Iguacine, 3 levam o nome "Cavi Borges" em suas fichas técnicas: Na produção dos curtas "Último Retrato", de Abelardo de Carvalho, e como diretor dos filmes "Em trânsito" e "Vida de balconista". Além do semelhante nome “Cavídeo” que está inserido na co-produção de "Rendez -Vous", de Fernanda Teixeira e de “O que vai ser?”, de Getulio Ribeiro. O público do festival percebeu a constância do realizador entre os créditos projetados no telão do teatro do Espaço Cultural Sylvio Monteiro, mas pode não ter percebido a presença do próprio transitando entre os espaços do local: Sempre trajando camiseta e bermuda e conversando com aqueles que o tomam por referência.

Cavi é dono da locadora mais conhecida entre os cinéfilos, estudantes de cinema, artistas e aqueles que simplesmente gostam de alugar um filme para assistir com a família nos domingos: a Cavideo, que há 13 anos funciona religiosamente das 10h a meia noite, todos os dias. “Em 13 anos nunca fechou, nenhum dia. É uma parada até que eu me orgulho”, declara ele, incluindo os feriados e fatos como as terríveis chuvas que ocorreram no Rio. A começar por essa curiosidade, é notável que algo de diferente acontece na lojinha abarrotada de filmes, localizada no Cobal do Humaitá, em Botafogo. E para entender essa fidelidade com os clientes e a paixão que o faz comparar a locadora a um filho, é preciso que a partir daqui se insiram flashbacks narrados por Cavi. Voltemos então a 1996, onde vemos um rapaz de 20 anos treinando judô. Judô?! Antes que hajam dúvidas se estamos mesmo no filme certo, Cavi esclarece: “Desde os 3 anos eu faço judô. Peguei faixa preta com 15 anos. A minha vida era fazer judô. Era de manhã, de tarde e de noite”.
A intensa dedicação ao esporte estava prestes a lhe trazer o auge esperado por todos os atletas: ir às Olimpíadas. Cavi treinava para Atlanta, onde participaria como reserva, quando machucou a costela e foi cortado.

E eis o primeiro ponto de virada.

Para combater a depressão em que possivelmente se imergiria, Cavi estudou a proposta que recebeu da mãe: abrir uma lojinha de judô na Cobal, que pertencia à imobiliária de seu tio. “Eu sempre tive jeito pra negócios, sempre fui meio empreendedor”, conta ele, que logo intuiu: “Quem vai vir ao segundo andar da Cobal pra comprar roupa de judô? Não vai dar certo...”.

Nessa época, TVs por assinatura começavam a se estabelecer no Brasil, fazendo com que o ramo das locadoras lentamente se dissolvesse. As vitrines, ao invés de lançamentos, anunciavam a venda de seus filmes por preços inacreditáveis. Em alguns casos, por até R$1 era possível obter uma fita. Cavi não entendia nada de cinema, mas entendia que ali morava uma oportunidade empreendedora. A ideia da lojinha de judô se transformou numa pequena locadora, com um acervo de 150 filmes, em grande parte blockbusters ou com temática de artes marciais. O espaço se dividia em duas partes: uma com os filmes, outra onde ele organizou uma venda de artigos de cinema, trazidos de sua recente viagem a New York.

Devido a procura de artistas, que já costumavam frequentar a Cobal, por filmes dos quais Cavi nunca havia ouvido falar, os filmes nas prateleiras começavam a se multiplicar. “Eu anotava e ia pesquisando. Comecei a ficar conhecido como o dono da lojinha que tinha filmes que ninguém tinha”, lembra ele, que aos poucos se recupava da fratura que o impediu de ir às Olimpíadas e voltava aos treinos. Nos quatro anos que se seguiram, o judô e o cinema eram mantidos por Cavi – o segundo, porém, ainda ficava somente nas prateleiras. O patrocínio recebido pelo Vasco era revertido em investimentos para a locadora, que ia ganhando cada vez mais notoriedade.

Novamente prestes a ingressar nas Olimpíadas – desta vez como titular, em Sydney, na Austrália – um segundo ponto de virada na narrativa de Cavi: um novo incidente, também durante um treino, fez com que dois ligamentos de um de seus joelhos se rompessem – o que resultou na imagem de um atleta sobre uma cadeira de rodas.

Com o tempo livre que inesperadamente recebeu, somada a perda do contrato com o Vasco, Cavi passou a pensar em eventos para que a locadora pudesse ser mantida. O primeiro deles foi o encontro de fãs da série “Arquivo X”, onde eram expostos produtos relacionados para venda. Os encontros aconteciam na loja ao lado de onde funcionava a locadora, onde havia espaço para 100 pessoas sentadas e podia ser feita a projeção dos episódios da série – que eram enviados via correio para a presidente do fã-clube.

O pessoal vinha pra Cobal mas ninguém sabia que tinha um segundo andar. Tinha que fazer as pessoas subirem, mas era dificil”, conta Cavi. Com esse propósito, outros eventos passaram a ser realizados e, com o gancho da recente morte do diretor Stanley Kubrick, um cineclube foi inaugurado. Na sessão especial do diretor, foram exibidos curtas que sequer haviam chegado ao Brasil: vieram do exterior, em decorrência de uma das viagens de Cavi. A partir deste “pequeno detalhe”, pode-se imaginar o quanto o fato ganhou projeção. E aqui fica marcado o terceiro plot-point: A Cavideo passava a ser destaque na mídia. “Os eventos foram quase um divisor de água na Cavideo. Eu percebi que fazendo eventos eu conseguiria sair no jornal e conseguiria atrair publico pra locadora. Em um mês dobrou o faturamento”, ensina Cavi que, ainda com a perna engessada, manteve as sessões do cineclube homenageando outros diretores. “Cada vez mais a locadora foi crescendo e o judô foi diminuindo na minha vida”.

Quarto ponto de virada: a Cavideo ganhou grande frequencia de alunos de cinema da Universidade Estácio de Sá. “Eu comecei a ficar muito amigo deles e comecei a namorar uma garota que fazia cinema lá também. E comecei a acompanhar as filmagens que ela ia fazer”, relata Cavi, que resgatou um fato ocorrido durante uma corrida solitária para embasar sua primeira experiência fílmica, em 2001: o curta metragem “Fora do eixo, o filme sem saída”. “Eu não sabia nada de cinema, mas eu sabia muito bem da história. Peguei todos os filmes que tinham de pessoas correndo e comecei a pensar o filme todo em função de outros filmes que eu tinha”, explica. 1 ou 2 filmes por ano passaram a ser realizados como hobby por Cavi, que concluiu a faculdade de economia e ingressou em cinema, também na Estácio. A primeira, foi concluída em 10 anos e a segunda também passava a ter prazos maiores, pela necessidade de manter a locadora, os eventos e o Judô – que ia se tornando inexistente em sua rotina. “E o cinema é bom que não tem idade, quanto mais velho melhor. O Judô tem um limite”, ressalta o “judoca cinéfilo” que virou “o cara dos eventos”.

Somente há 5 anos atrás Cavi passou a ser considerar um realizador: “Quando eu realmente parei de fazer judô e comecei a todo dia pensar em filme. Ai eu decidi que ia ser um cineasta”, diz ele, contando que ali nascia a Produtora Cavideo. “Meu sonho, hoje em dia, não é ser campeão olímpico, é fazer filmes, lançar, ir pra festivais”.

Com as experiências absorvidas nas produções da Cavideo, tanto a locadora, quanto a produtora, Cavi ajudou na formação e consolidação de inúmeros outros projetos, como a criação do Cine Santa, em Santa Teresa, que iniciou as projeções dentro de uma igreja e hoje funciona como um cinema, num imóvel cedido pela Prefeitura do Rio. As parcerias e co-produções realizadas pela Cavídeo são incontáveis até para o próprio Cavi: “A Cavideo faz muita coisa ao mesmo tempo”.

Ao saber que o curta “O que vai ser?”, produzido por ex-alunos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, estaria competindo na Mostra Competitiva Baixada, Cavi não conteve o enorme sorriso: “Ah, que legal! Eu emprestei a câmera pra eles”, comemora. “Minha motivação é produzir. Gosto de fazer e de ver as pessoas fazendo”, declara ele, cujo apoio acontece através de troca de indicações de parcerias, empréstimo de equipamentos, aluguel de filmes grátis para estudo de personagens, divulgação em seu blog na Globo.com, filmagens de peças teatrais, empréstimos de projetor para realização de cineclubes, espaço na locadora para divulgação de filipetas e a lista fica encerrada por aqui, antes que todo o espaço da postagem seja consumido. Contrariando o costume comum a todos de dizer “não” para depois reavaliar a proposta, Cavi alega: “Pra todo mundo que chega aqui, eu sempre digo sim”, encerrando o flashback que mergulhou em sua trajetória.
A imagem vista agora é de uma pequena sala, cujas quatro paredes são repletas de posteres de produções “Cavideo”. Um armário de cor cinza guarda todas as cópias e masters dos filmes: 18 dos curtas são dirigidos por Cavi. Num quadro branco, daqueles que recebem escrita a caneta piloto, estão relacionados os possíveis festivais para os quais se inscrever. Em prateleiras, mais de 20 troféus se distribuem. Centenas de recortes de jornais estão organizados em enormes pastas catálogo – os mais recentes recortes noticiam a Cavideo no III Iguacine. Na ilha de edição, num espaço no fundo da sala, 4 longas se encontram em processo de finalização.
A gente está conseguindo criar uma rede alternativa, que a gente faz, distribui e exibe sem ter dinheiro. E não fica dependendo de alguém querer ajudar”, conta Cavi – que agora realiza uma média de 12 filmes por ano – citando a distribuidora “Original vídeo”. “É uma outra empresa, mas quem coordena sou eu. Eu mesmo mando pra festivais, eu tenho uma distribuidora, eu tenho uma locadora. De alguma forma, de uma forma independente, a gente consegue todas as etapas sem precisar de alguém grande ou patrocinadores”, explica.
Onde funcionava a locadora, no segundo andar da Cobal, hoje funciona a produtora. O espaço ao lado, onde se iniciaram os encontros do “Arquivo X”, são realizados os lançamentos dos filmes da Cavideo, além dos demais eventos. No mais recente deles, a transmissão televisionada do Oscar foi projetada no telão. “Lotou. A gente fez bolão de apostas, quiz de cinema...”, relata Cavi. Bem abaixo, numa loja no térreo, funciona a locadora, hoje com pouco menos de 15.000 dvd's e 2.000 fitas, que são mantidas por representarem fontes de pesquisa para estudantes e para os 15.007 associados. “A gente divide a loja por diretores, uma coisa que a Cavideo foi uma das pioneiras nesse sentido”, aponta Cavi, andando entre os corredores da locadora, que tem frequentadores ilustres como Eduardo Coutinho e Nelson Pereira dos Santos. “ É a maior honra”, expressa.

A Cavideo hoje em dia é mais que uma locadora, é uma galera. Hoje em dia, a Cavideo produtora tem 20 diretores que fazem filmes ao mesmo tempo. Eu acho que no futuro, daqui a 20 anos, a Cavideo vai virar um documentário”, prevê o cineasta, que defende o “cinema da parceria”. “Eu acho que a arte e o cinema são pra juntar e tem mostrado resultados. Pra mim artista é artista, não importa o quanto ganha. Todos os meus filmes tem muita coisa de juntar a favela com asfalto”, afirma, comparando sua visão com a de Marcus Vinícius Faustini, idealizador do Iguacine: “É um festival que eu acompanho desde o início, acho que ele é a cara dos filmes da Cavideo, por essa coisa da periferia, que eu acho que é o que o Faustini prega mesmo lá na ELC”.

Cavi Borges participou como jurado na primeira edição do Festival, em 2008 e teve 2 de seus filmes exibidos na edição de 2009, entre eles, seu longa “L.A.P.A”. “Eu tenho um carinho especial pelo Iguacine”, declara.

Acompanhe hoje a noite, no Sylvio Monteiro, a premiação das Mostras Competitivas e não perca os próximos capítulos da “Trilogia do Cavi”.
Veja mais fotos da Cavideo em: http://www.flickr.com/photos/culturani/

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