Eu fui pra cadeia

sexta-feira, 23 de julho de 2010

por Jéssica de Oliveira

A manhã da última quarta-feira começou como qualquer outra. Me arrumei e aguardei a chegada da minha amiga pessoal e, também jovem repórter, Hosana Souza, que iria me acompanhar até a frente do Espaço Cultural Sylvio Monteiro, onde encontraríamos nosso editor Julio Ludemir para mais um dia de trabalho.

Chegando lá, seguimos para a base da Polinter de Nova Iguaçu. Hosana e eu cobriríamos uma ação do projeto Livro Livre, orquestrada pelo Secretário Municipal de Cultura e Turismo, Écio Salles, e que contava também com a presença de escritores e agentes culturais da cidade. O objetivo da ação era distribuir bons livros para alguns detentos e que, posteriormente, seriam repassados para qualquer outro preso que se interessasse pela leitura.

A minha expectativa quanto à matéria não fugia do comum. Em nenhum momento eu parei para refletir sobre o local a que me dirigia naquela manhã. Meus pensamentos se limitavam apenas nas perguntas que poderia fazer e no texto que posteriormente viria a escrever. Até que meus olhos abruptamente se abriram.

Ao vislumbrar o grande prédio de fachada velha e por reformar, com a palavra polícia escrita em letras garrafais numa placa, eu senti uma ficha cair lentamente dentro de mim. Dirigimo-nos à entrada lateral, onde encontramos três agentes penitenciários vestidos com suas vistosas camisas azuis e os cumprimentamos: “Bom dia”. Ao atravessar a porta de entrada, meu coração sentiu um aperto, surpreendendo a mim mesma.

Funcionários simpáticos
Como é de se esperar de uma penitenciária, havia sólidas portas de ferro com correntes e cadeados por todos os lados. O amarelo das grades começou a receber de mim olhares incessantes e as paredes pintadas de cinza e branco começaram a me dar vertigens. As salas que atravessamos despertavam a minha curiosidade e um interesse semelhante ao de uma criança que vê pela primeira vez a tela de um cinema. Entretanto, uma parte de mim não queria vê-las. Comecei a sentir uma leve sensação de sufocamento, enquanto o meu inconsciente me dizia que aquele lugar guardava sofrimento e que todas aquelas portas e cadeados serviam de garantia de que a dor não fugisse.

Subimos uma escada, passando pelo setor de identificação de objetos e alimentos que seriam entregues por parentes e amigos aos presos. Mais um “bom dia”. Os funcionários pareciam simpáticos, porém nada fazia com que eu relaxasse. Assustada, percebi fiquei tensa desde que aquele prédio entrou no meu campo de visão.

Mas por um instante tudo passou e eu voltei a não pensar naquilo. Atravessando um curto corredor, vi Écio e seus companheiros e me senti em casa. Me achei até boba e cheguei a querer rir de mim mesma e de todo drama que eu estava silenciosamente fazendo.

Enquanto conversava com conhecidos e era apresentada a novas pessoas, voltei a sensação de “nada que fuja do normal”. Reconhecendo personagens em potencial e pensando em quão boa seria minha matéria, me perdi em meus pensamentos e voltei a ser uma Jovem Repórter fazendo apenas o que lhe era conferido. Iniciei um bate papo descontraído com Hosana e Camila Oliveira –ex-integrante do grupo de Jovens Pesquisadores – e o clima leve que ganhou vida quando encontrei meus colegas, tomou força e eu me esqueci completamente do que senti minutos antes. Até que Camila mudou de assunto e começou a falar sobre o que estava para acontecer. Não me lembro de todas as suas palavras, pois eu estava mais uma vez submersa no meu mundo particular. Mas uma frase, dita com tanta verdade, me puxou para a realidade. “Nós vamos entrar na cela dos presos. O que você esperava?”

Salas de visitação
O que eu esperava? Não sei. Mesmo agora, depois de tudo, eu não posso responder o que eu imaginava que fosse acontecer. Estava lidando com aquela matéria com tanta naturalidade, que não pensei a fundo sobre o que ela realmente era. Tive que entender na marra.

Os livros que seriam libertados já estavam organizados. Confesso que achei um pouco irônico usar a expressão “libertar” num lugar onde todos estão presos; onde todos perderam o direito à própria liberdade. Mas nem mesmo a piada de mau gosto que eu não contei a ninguém amenizou o meu nervosismo.

“Vamos lá, galera”, disse Écio em voz alta animando a todos nós. Fomos. Percorremos um corredor, depois uma sala, depois uma daquelas portas que identificam metais – em nenhum momento fomos revistados, o que eu estranhei – até que demos em um outro corredor. Assim que passei por ali, consegui ver salas de visitação.

Não quis ficar encarando, pois a minha educação me dizia que era feio ficar olhando a conversa dos outros. Entretanto, num rápido lance de olhar, vi num canto da sala direita dois homens conversando. O primeiro era o visitante e o segundo, o preso. Eu senti que o filme da minha vida parou naquela cena. O visitante estava falando e o detento o ouvia com a expressão triste e de cabeça baixa. Naquele momento, eu tomei aqueles dois como sendo parte de mim, parte da minha família, do meu círculo de amigos. Parecia que era total e diretamente comigo.

Fim do corredor. Um portão – com grades amarelas, como todas as outras – se abriu e nós o atravessamos. Quando entramos, ouvi o som do metal sendo fechado atrás de mim e uma leve onda de medo balançou o meu corpo. Não medo de algum mal que poderiam me fazer, mas um medo do que os meus olhos registrariam, dos sentimentos que invadiriam o meu coração, traindo a minha postura neutra e até, por mais impossível e besta que fosse, de ficar trancada lá para sempre.

Eu pensei na minha mãe. Lembrei que não dissera onde ia, limitando apenas a informá-la que iria fazer matéria e que estaria com o Julio. Ela, com certeza, não permitiria que eu fosse. E quando olhei para as grandes salas que estavam a minha frente, prontas à nossa espera, descobri o porquê.

Cem pessoas
A porta de ferro da esquerda se abriu e eu pude ver os detentos sentados no chão da grande cela abraçados ao joelho. Naquele momento, eu quis sumir dali, ouvir a covarde que há em mim e que, por muitas vezes, esmaga a minha coragem e meu bom senso, fazendo de mim apenas uma menina que não suporta certas verdades. Não queria acreditar que tudo o que se vê nos filmes é real e que há sim, mais de cem pessoas vivendo num espaço menor que a minha casa.

“Bom dia”, disse o delegado Orlando Zaccone, diretor das carceragens do Rio de Janeiro e mentor de um badalado projeto de cidadania na delegacia de Nova Iguaçu. “Bom dia”, responderam todos os detentos num tom alto e receptivo, me tirando mais uma vez dos meus devaneios. Eu ouvi pouco do que foi dito. Segurava a câmera fotográfica nas mãos, mas não conseguia erguê-la até os meus olhos. Hosana tocou o meu braço: “Vai”. “Não consigo”, respondi, vencida. Ela tomou a câmera de mim e começou a trabalhar.

A atmosfera era indescritível. Não via nenhum sinal de desordem ou qualquer coisa que representasse uma ameaça, mas a tensão sobre o meu corpo era tão pesada que, por um momento, achei que não a suportaria e acabaria desabando.

Meus olhos passaram rosto por rosto, não à procura de conhecidos ou de qualquer outra coisa. Era apenas automático. Homens dos mais diversos tipos, que não mereciam o meu julgamento e eu, inconscientemente, não o fiz - o que me deixou grata. Cada rosto novo que eu descobria no meio daquela pequena multidão, me parecia familiar. Não que eu os conhecesse, mas sentia que eles representavam pessoas que eu amo e que são alvo das minhas orações. Perguntei-me, então, por que o Julio me levou até ali.

O lugar, como disse, era pequeno para tanta gente. As paredes eram velhas e com palavras escritas por objetos que raspavam o emboso. Sacolas penduradas pelas paredes e varais de roupas compunham o cenário. Para dormir, os presos usavam redes de tecido, erguidas a metros do chão e, ao que me pareceu, contavam também com pequenos compartimentos nas partes mais altas, que se assemelhavam a nichos. O teto era de telhas transparentes que permitiam a entrada de um pouco de luz solar, com fortes grades de metal em sua parte inferior. O calor era intenso e o ar era escasso. Comecei a sentir um pouco de falta de ar, mas pedi para mim mesma que não passasse mal.

Ex-sequestrador
Voltei ao meu estado consciente assim que ouvi a voz de Écio no microfone. Ele apresentou um a um: o músico Daniel Guerra, o poeta Moduan Mattus, o designer Egeu Laus, o diretor de teatro Lino Rocca, o rapper Dudu de Morro Agudo, o ex-sequestrador Chinaider Pereira e o professor Marcos Alvito e o escritor Julio Ludemir, os dois últimos autores de livros a serem libertos ali. Écio também apresentou Hosana e eu, que sorri, como sempre faço, e recebi sorrisos em troca. Não me lembro bem do seu discurso, pois os meus olhos não se direcionavam a nenhum outro lugar além das expressões interessadas nos presos e a minha cabeça estava muito ocupada com meus pensamentos.

Mas mais uma vez voltei para a Terra. Chinaider Pinheiro, integrante do grupo Afro-Reggae, começou a falar e, dessa vez, eu não consegui desviar minha atenção dele. Chinaider esteve preso por 10 anos, condenado por sequestro e por ser chefe do tráfico em inúmeras favelas no Rio de Janeiro. Hoje, após tanto tempo lutando contra a própria vida no crime, estava ali, dando seu testemunho de que é possível dar a volta por cima, através da cultura.

Lindas palavras, revestidas de esperança tomaram conta daquele lugar horrível e eu, protegida pela intimidade dos meus pensamentos, pedi a Deus que todos aqueles homens tivessem a mesma oportunidade e força de vontade que Chinaider teve.

Após a fala de Julio, autor de “Lembrancinha do Adeus”, um dos livros que foram libertos, a distribuição foi feita e um dos presos agradeceu pelo que lhes foi dado e pela nossa presença. Saímos da primeira sala, mas ainda havia outra a minha espera, que vinha me lembrando de sua existência com gritos que saíam de lá e ultrapassavam as grossas paredes da penitenciária.

13 Comentários:

Josy Antunes disse...

Ufa. Terminei de ler com o coração apertado. Texto sensacional, Déh. Parabéns.

Yasmin Thayná disse...

Nossa! Muito legal. Dá até calor de ansiedade e dá pra imaginar as cenas de cada lugar que você ressaltou. Magnífico.

Felipe Branco disse...

Que texto!!!! Sensacional!!! Eu queria poder saber palavras para poder descrever o que senti quando li. Brilhante!!!! Raras coisas mexem comigo. Parabéns pelo texto magnífico!

Muito obrigada. Fico feliz que tenham gostado. Divulguem para os amigos (não só o meu texto, mas os outros que também são ótimos).
Abraços.

Unknown disse...

Caraca eu nem tenho o que dizer... super interessante!!! tema muito bom, Parabéns Déh!!!

Meeeu Deus, eu não teria coragem nenhuuma de fazer esse tipo de matéria. Como diz nosso amado amigo Erick Huebra: "vai, filhinha de papai", hahaha. Mas ficou deslumbrante. Tema ótimo, matéria ótima, foto ótima. Parabéns, Déh!

Gostaria de ressaltar que essa bela foto foi tirada pela nossa querida Hosana Souza, afinal, eu não conseguia nem erguer a câmera.

Unknown disse...

Déh, surpreendendo a cada dia, nunca imaginaria que você fosse fazer uma coisa dessa, amei cada detalhe que foi contado, está de Parabéns . Menina você é demais , competente!

Unknown disse...

E eu tinha imaginado outra coisa quando você me disse q havia ido a cadeia, tonta eu né!

Marcele Pontes disse...

Compartilho da opinião da Josy... Terminei de ler com meu coração apertado... Parabéns a Jéssica e parabéns mais uma vez ao trabalho de vocês!

Paula Souzza disse...

Texto brilhante!! Nao tenho palavras para descrever a emoçao que senti ao lê-lo. Parabens, voce é muito competente!!! Parabens!!!!!

Marcos Alvito disse...

O que emociona no seu lindo texto é a sinceridade e a fraternidade, a capacidade de perceber, como diria o poeta romano, que "nada do que é humano me é estranho". Fico na torcida por você e pelos outros Jovens Reporteres, precisamos de jornalistas sensíveis.
um abraço,
Alvito

Déh disse...

Muita obrigada. À todos. :)

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