Amor e ódio

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

por Tony Prado

Uma trama de poesia russa, teorias freudianas e humor brasileiro. Uma história onde a princesa Anastácia Romanov se encontra com seu filho perdido no Amazonas, dentro de um bar, típico de cidade de interior nordestino, traçando para sempre uma história de amor e ódio entre Marinalva Revólver e Paco. O que isso tudo pode ter em comum? A resposta se encontra no fantástico espetáculo “Traças da Paixão”. Muito além de uma peça teatral, Traças da Paixão, de Alcides Nogueira, trata de um incomum encontro entre Marinalva Revólver (Lucélia Santos) e Paco (Maurício Machado), num momento inusitado da vida da protagonista, onde desejos incomuns e frases mal formuladas fazem um cenário perfeito para uma das melhores tragicomédias da atualidade.

“E eu fico imaginando, que, de repente, ele vai cruzar por esta porta, como se nada tivesse acontecido, e como se soubesse de tudo” - é o enredo perfeito para que o sádico Murphy agisse na vida de Marinalva e a fizesse mudar todo seu cotidiano, destruindo a paz que conquistara depois de desventuras em desbravamento a um Brasil receptivo e surpreendente. A história gira em torno de Marinalva, que, na procura de Paco, seria a princesa Anastácia Romanov, herdeira do trono Russo que supostamente teria escapado do massacre feito pelo exército vermelho contra a família do Czar Nicolau II, seu pai, e parado no Brasil, na região da Amazônia. Paco, por sua vez, era um andarilho errante, que entre suas histórias e lembranças, seria o filho de Marinalva, perdido outrora na Floresta Amazônica e estaria em busca de sua mãe.



Segundo Paco, Marinalva Revólver, que tinha adquirido tal nome devido a uma aparição numa cidade do interior, onde ela montava um cavalo, vestia um manto digno da realeza russa e apontava uma carabina para o alto, nomeando-se a própria Anastácia, era a própria herdeira da família real russa e também seria sua mãe, da qual se perdera devido a infortúnios no novo solo brasileiro. Paco encontra Marinalva em seu bar, acusando-a de ter abandonado sua identidade para viver no anonimato em um bar de beira de estrada afastando-se da civilização. Paco tenta, sem sucesso, convencer, ou desvendar, que Marinalva seria realmente a princesa russa e tenta, de todos os modos, recobrar os costumes russos para convencer Marinalva de que ela era a verdadeira Anastácia e, portanto, sua mãe.

Mãe de Paco
Segundo os relatos de Paco, ele testemunhou a chegada de sua mãe à cidade, escondendo-se sob os braços de uma família adotiva, mas viu no comportamento de Marinalva que ela seria realmente a princesa Romanov. Assistiu à cidade inteira julgando-a e escorraçando e como louca. Desde então dedicou-se à sua busca, para que pudessem viver como mãe e filho novamente. No entanto, Marinalva nega-se a todo momento que ela poderia ser a Anastácia das histórias e tampouco a mãe de Paco. Paco, por sua vez, mostra para ela um samovar que teria sido dela na infância, que ele comprou depois de trabalhar dois solenemente usou para fazer chá para Marinalva. Paco se dedica em tempo integral a convencer Marinalva de que ela é sua mãe. Porém, quando tudo parece perdido e Paco parece apenas um louco andarilho qualquer, Marinalva começa a apresentar indícios de que realmente ela tem lembranças e certos comportamentos dignos da cultura russa. Uma canção e um simples gesto de mover de mãos fizeram com que as suspeitas de Paco aumentassem ainda mais. Porém, o infeliz destino dos dois reserva outros acontecimentos.

Determinado a descobrir a história de Marinalva, Paco encontra identidades falsas e documentos que o levam a crer que cometera o maior engano de sua vida. Viu identidades e nomes que Marinalva usara em várias épocas. Assim, Marinalva também descobre que Paco usara várias identificações falsas. Num momento de desespero, Paco perde o controle e não vê mais Marinalva como mãe, mas como carne, mulher, desejo, erotismo e instintos, despertando sentimentos cada vez mais primitivos. Com isso, Paco dominou Marinalva em conjunção carnal, não se importando mais com sua busca.

A partir desse momento, a história ganha outros rumos, onde a apresentação prende a plateia com acontecimentos cada vez mais chocantes, porém sem nunca perder o bom humor. Marinalva descobre que está grávida de Paco e decide que vai fazer um aborto. Nesses momentos, a peça mostra parâmetros incomuns, como se a cada cena os dois atores se tornassem muito além dos personagens originais da história, a ponto de levar o espectador a especular se os personagens mudaram, se a história mudou, se o que eles passam é apenas um sonho de algum dos personagens ou ainda se um sonho de ambos os personagens. Em muitas cenas, daí pra frente, a história se confunde num drama entre um casal que convive com os personagens. Os personagens entram em conflitos constantes entre ilusões e devaneios, como se um certo mundo existisse para um dos personagens e não para o outro, ou ainda como se cada ator estivesse interpretando um papel em sua própria peça, que acaba por cruzar o espaço da peça do outro ator.

No meio dessa completa casa de loucos, Marinalva chega em casa, com o aborto já feito e os diferentes mundos dos personagens entram em conflito mais uma vez. Paco começa a imaginar coisas, cenas e animais que somente ele vê, e Marinalva o condena a cada minuto. Logo após atos explosivos de Marinalva fazem com que Paco perca a cabeça e ela mesma passa a ver as coisas que Paco já via. Mais uma briga e mais uma vez a história muda por completo. Paco descobre, nas coisas de Marinalva, um medalhão, daqueles de duas metades que se destacam, com o brasão da família Romanov, e ela vê que a metade que ela tem encaixa perfeitamente com a metade que Paco possui em seu chaveiro, confirmando uma vez por todas que seriam mãe e filho. Então, para o choque da platéia, eis que ecoa a seguinte sentença no ar “Puta que pariu! Eu comi minha mãe”.

Teorias freudianas
“Segundo uma das teorias freudianas, o homem, em seus primitivos instintos animalescos, procura uma parceira que lhe lembre sua mãe, pois a mãe é um símbolo de cuidado, afeto e ainda de par ideal, sendo programado assim na genética subconsciente de cada indivíduo que a imagem de sua mãe é a perfeita para a propagação de seus genes. Então, de uma maneira paródica, todo homem sente tesão por sua própria mãe. Foi extremamente genial a propositura deste tema na peça, feito de uma maneira tão inteligente e irreverente para os personagens, sem contar com o incrível senso cômico proposto na cena”, comenta a psicóloga Sueli Rodrigues, 24 anos, que assistiu ao espetáculo.

Em meio a essa cômica insanidade, Marinalva, que já foi pistoleira, presidiária, dona de bar, mãe-de-santo (com direito a ponto de Tranca-Rua e tudo, com penas de galinha) e escrava Isaura (como brincou a atriz durante a peça, em referência a um antigo papel seu), declara-se finalmente como a verdadeira Anastácia Romanov e Paco, que já foi andarilho, pedinte, estelionatário (que tem o hábito de carregar seus cartões estourados e contas, com direito a comunicado do SPC em sua carteira), seria realmente o filho perdido na mata amazônica, unindo com criatividade e comédia esse caleidoscópio artístico, fazendo com que apenas dois atores e dois personagens se desmembrassem nos mais variados e inusitados papéis. Num verdadeiro elenco holywoodiano, feito por apenas duas pessoas, Traças da Paixão superou todas as expectativas e deu um verdadeiro nó na mente de qualquer um que o tenha assistido.

E para satisfazer a curiosidade geral, a alegoria das traças tem seus fundamentos mostrados na peça, desde o seu literal, com a infestação de traças no bar de Marinalva, até seus simbolismos mais bizarros na questão do dinheiro, do passado de alguém, do amor, do sexo, da mente e ainda de um maravilhoso presente para Nova Iguaçu.

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