Espelho

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

por Fernando Fonseca




          Família Fonseca. Comendador Soares, Nova Iguaçu. Verão de 1980.

          O cérebro dava sinal de vida, sentia o ar invadir meus pulmões. O sorriso se mostrava antes que minhas pálpebras. Olhava para o teto, depois para a janela. O sol invadia as frestas como um animal selvagem enjaulado sedento de liberdade... Liberdade a qual, também, me dominava. Levantei, senti meus pés tocarem o gélido chão do quarto, um cômodo simples e aconchegante. Pássaros, galos, latidos, passos... A rua me chamava.
         Eu nunca entendi direito o porquê nós simplesmente deixamos de sermos crianças. É magnífico! Desde a hora em que acordamos até a hora de dormir. Mágico! Pena que uma década de vida não dura para sempre...

          A dor nas pernas me contempla com mais um dia de vida. Entre as cobertas, eu sinto os meus dedos tocarem uma pele macia. O cheiro delicado invade minhas narinas. Olho para o lado e absorvo toda aquela essência. Há quinze anos perco o fôlego todas as manhãs de tanto frenesi. Um beijo no rosto. Um gosto nos lábios. Um tecido macio. Um reflexo no olhar. Felicidade em todos os sentidos. Todas essas coisas que não me deixam em paz, na minha própria paz. Olho para o teto. Encaro a velha luz, que se renova a cada dia, enquanto minha beleza se esvai. O passado ainda não passou. Um abraço, uma presença. A porta do quarto se abre, um pequeno vulto surge. Rápido e imperativo, já nos pegou!
          “Pai, pai, acorda! Vamos pra rua, o sol já está chamando!”
          Ser criança é realmente mágico. Mas a beleza da juventude não fica pra trás. Quanto à juventude a dois, essa é capaz de criar as mais belas coisas...

          Mas, ainda tinha o café da manhã. Esse era lei! Sem café da manhã, sem brincadeiras. Minutos desperdiçados aos quais eu poderia estar voando alto. Porém, não havia como escapar. Meus pais na cozinha, o tal cômodo que me separava da liberdade, sentados à mesa. Um perdido em sua leitura, a outra se perdendo entre as torradas. O cheiro de café demarcava o território. Como eu detestava aquele cheiro. A benção em primeiro, o apressado consumo em segundo. Nem conseguia sentir o gosto em sua totalidade. Quando dava por mim, já estava correndo pra fora de casa...

          Ele sobe entre nós, por debaixo do cobertor. Com seu sorriso ao mesmo tempo maroto e inocente, olha para mim com um brilho no olhar. Um espelho. Uma emoção. Minha emoção. Como pode um filho parecer tanto com um pai? Mas só no espírito, os traços vieram todos da mãe. Esta que, no momento, já nos olhava com todo seu encanto. Talvez ela percebesse o mesmo que eu, talvez não. Seu sorriso dizendo que sim, apenas devolvo com outro sorriso.
          “Quem chegar por último na cozinha é mulher do padre!”
          A beleza da inocência. Como estou feliz...

           Abria a porta, sentia o sol tocar todas as minúsculas moléculas proibidas da liberdade que revestiam o meu corpo. Momento fotossíntese. Eu poderia ter ficado horas com os braços abertos, na porta de casa, recebendo toda aquela energia, mas, o vento me conduzia até a parte mais distante da casa... O portão que dava na rua. Era hora de desbravar os sete ares. Com as armas na mão, eu era imortal. Pelo menos a infância me dizia isso. Já estava correndo...

           E levantamos juntos. Tomamos um achocolatado com bastante gelo e algumas torradas. Torradas me lembravam o passado. Como o gosto delas agora era diferente, agora tinham gosto. Não creio que ele pense o mesmo. Eu estava na segunda e ele já havia terminada com todas.
          “Vamos pai, eu já acabei! Só falta você!”
          Termino apressado. Corremos da cozinha para a sala. Abrimos a porta e sentimos o calor do verão. O céu já estava sendo desenhado...

          E voando. Primeiro baixo, depois alto, mais alto, mais alto e mais alto. Quase me perdia no céu. Era uma guerra. Pipas em todas as direções, subindo e descendo, cortando e sendo cortadas. Às vezes ataco, às vezes defendo. Eu era rápido, mas não era o único. Algumas caíam por terra, outras nunca caíam. Eu fazia parte das outras...

          Com as mais diversas cores e formatos, todas apresentam perigo em potencial. Não basta apenas ser bom, é preciso estar bem equipado e em paz com o vento. Pego a nossa pipa da sorte, a preta e amarela, e sai correndo com ela na mão em direção oposta. Levanto a pipa o mais alto que posso. Com ajuda é sempre mais fácil.
          “Isso pai! Mais alto, mais alto, mais alto. Solta!”
           Não me lembro de ter meu pai me ajudando, assim como não me lembro de não ter ajudado meu filho. Ele poderia ter sentido essa sensação todas as manhãs de verão, teria adorado. Mas, onde quer que esteja, sei que se orgulha...

           As horas passavam e eu não percebia. Como a dilatação do tempo me envolvia cegamente. Crianças correndo por todos os lados atrás de suas inúteis peças de combate. Eu ainda estava na guerra, golpeando velozmente todos que se aproximavam. Eu era um raio no céu. Já era tarde...

          Como ele era rápido. Lá se foram cinco pipas. Acho que nunca vira tamanha velocidade em um papel. Ele não era um raio no céu, mas sim o raio no céu. Munidos com um enorme carretel, no mínimo dez vezes maior que o da minha época, e uma garrafinha de água. Seguimos sem saber o que é o cansaço.
          “Pai, viu essa? Não tem pra ninguém!”
          E realmente não tinha. Era mágico assisti-lo. Nostalgia...

          O sol ia sendo engolido pelo horizonte, distante, e eu continuava no céu. Sem danos, sem ser abatido. Marcas nos dedos e na pele. Gostaria que meu pai pudesse estar aqui pra ver o quão bravo eu fui hoje. A vã valentia de um guerreiro, reconhecida por uns poucos meninos do bairro. Um fato, porém, que não me tirava o prazer de viver tudo aquilo todos os dias. Como o tempo passa e não percebemos...

          As primeiras estrelas surgem fracas com a penumbra. Ainda tenho as marcas nos dedos e na pele. As mesmas que meu filho leva. Parece genético, porém, é muito mais profundo que a genética. É a afinidade. A amizade. O amor.
          “Pai, vamos soltar mais pipa amanhã?!”
          “Sim, com certeza...”
          Eu ontem e ele amanhã, sem medo do espelho se quebrar. Não sei ao certo até quando esses momentos durarão, por isso aproveito intensamente.
          “Pai, eu tenho muito sorte em ter essa pipa!”
          “Não, eu que tenho muita sorte em ter você!”
          Família Fonseca. Comendador Soares, Nova Iguaçu. Verão de 2010.

37 Comentários:

Maria do Carmo disse...

nossa! chorei!
que história linda!

Pedro Henrique disse...

Me lembrei dos meus tempos de infância.
Tenho uma filha, ao qual eu amo, mas não infelizmente não pude fazer o mesmo.
Ela é bem feminina. rs
Mas gostaria de ter tido um filho pra dividir esses momentos com ele também!
Parabéns pela história...

Anônimo disse...

esse conto dá um filme!
rs

Anônimo disse...

chorei tbm!
isso é mágico...
já imaginei todas as cenas!

Unknown disse...

Parabens kra...muito manero o texto...tem futuro esse menino...

Anônimo disse...

Rubey Catarcione...

Há momentos que não damos o devido valor nas pequenas coisas, tais como: soltar pipa em um domingo de tarde com o pai ou com o filho. São estes os momentos em que percebemos a verdadeira face do companherismo. Ele está ali, torcendo por você. E não será só no momento da "pipa" e sim em todos os mementos em que precisar. O memso valor dado ao pai hoje, será dado ao filho amanhã. Merece um curta, em!

Sandro disse...

li duas vezes... acho q vou ler a terceira!
hehehe
história incrível!
parabéns.

João Nogueira disse...

"e o meu medo maior é o espelho se quebrar"

Yasmin Thayná disse...

Que lindo, fernando. Lindíssimo! Emocionante, de verdade. Parabéns.

Laís Budanski disse...

nossa, o texto mais emocionante que eu já li no Cultura NI.
infelizmente não te conheço mas, parabéns!
me emocionei completamente

Carolina Almeida disse...

Quero ver essa história nas telonas!!
linda!!!
bjs Fê. Parabéns!

Anônimo disse...

Nossa realmente é emocionante! Você tem futuro cara, Muito linda essa história!
Você está de Parabéns!

Anônimo disse...

Quero ser que nem vc quando crescer!!
Nandooo, fodaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
bjs

Luíza L.

Carol Vita disse...

Nossa primo, você me fez refletir no valor das pequenas coisas, e momentos. Emocionante, meus Parabéns você mereçe! MUITO SUCESSO PRA VOCÊ!!

Unknown disse...

Realmente, um texto muito emocionante e cativante. Fiquei impressionado com os detalhes. Muito rico o seu texto, em tudo. Parabéns

Monica disse...

Querido afilhado, parabéns pelo texto escrito e como me sinto orgulhosa em relembrar como eras tão pequenino e eu como educadora tive o privilégio de ser sua primeira professora e aquela que lhe ensinou a descobrir as primeiras palavras.Quanto tempo já se passou!!!
E hoje tenho a felicidade de poder partilhar juntamente com outros leitores de coisas tão belas escritas por você, continues assim, sempre enriquecendo nosso povo brasileiro e contribuindo para o engrandecimento do nosso país.
Parabéns pelo seu texto maravilhoso!!!
Beijos em seu coração !!!!
Monica

Anônimo disse...

Era pra chorar??
chorei!
aoshaoshaosha
q lindo!!
muito verdadeiro!
Parabéns galerinha do Cultura NI
cada vez melhores!!
bjs


Jana*

ohane lima disse...

ficou otíma, muito linndooo *--*
parabéns professor s2

ZUZU disse...

muito legal. parece até q eu vivi a história.
rico em detalhes realmente!
parabéns jovens reporteres!

Frank disse...

Quero participar do curta!
tô dentro!!!
não deixe de lado não...
abração

Caroline disse...

Que fofo, adorei. Arrasou!

Marta Medeiros disse...

amei *----*
quero um pai que nem você!!!

Kareen disse...

Extremamente rico em detalhes, extremamente ótimo!

Marina Rosa disse...

Realmente é bastante imagético.. leva a frente q tem futuro.
Vc sempre escreveu mt bem, mas este vai alem d tds os outros q li.

Parabens!

Cara, realmente, merece curta =)

Vera Lúcia e Joel disse...

Genial, são muito poucas as palavras que possam expressar o orgulho que senti ao terminar de ler esse belísimo texto escrito por você. Saiba que um texto bem escrito, é uma das melhores heranças que podemos deixar de presente para alguém, por isso considero que essas palavras foram um presente ao qual brindastes a todos que frequentam a esse blog.Parabéns mais uma vez ao brilhante escritor e que continue nos brindando cada vez mais com esses maravilhosos textos.

Marcelle Abreu disse...

Nossa, sem palavras...
simplesmente perfeito!
que história. que texto lindo.
parabéns! Amei.

Ana Bárbara disse...

gente, para tudo!
vc não é jornalista meu fofo,
vc é escritor!
deixa essa vida de lado e vai escrever livros!!!
supercompro!
rs

Bjs, parabéns Cultura NI.

Amanda B. disse...

it's an unbeliveble tale.
I've cried too!
congratulations darlin'
xx

Catariana disse...

Texto lindo!
Parabéns ao autor.

Carla *---* disse...

chupa que é de uva!
arrasou!
dorei *--*

Anônimo disse...

Fernanda Catarcione:
"... há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração, toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão..."
Sempre as pequenas coisas da vida é que vão sempre nos fazer tão humanos e tão essência naquilo que somos. Não desperdiçá-las é o desafio; mas nada impossível, estão aí todos os dias, basta aproveitarmos e se não conseguirmos, logo logo vem o dia seguinte, um novo dia, uma nova chance pra recomeçar.
Nossa Fer amei como conseguiu destrinchar em tantas linhas um momento tão rápido! Perfeito! Parabéns!

Anônimo disse...

Lindo mesmo, amei.
Parabéns, sinceramente perfeito.
Ass: Dandara.

Gabriela A. disse...

me fez lembrar João Nogueira!
Nostalgia...
Parabéns!

Anônimo disse...

quero viver uma história dessa com meu filho um dia!
não vejo a hora dele crescer pra isso acontecer!
bonita história.
parabéns!

João Marcelo

Lorayne;* disse...

aaa, adoreei *--*
ficou linda, parabéns (:

Anônimo disse...

Lindo!

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