Cama móvel

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

por Hosana Souza


Imagem Google

Em um sobressalto, os olhos se abrem assustados e ao olhar pela janela surge a constatação de que mais uma vez o ponto desejado havia ficado para trás. Após respirar fundo e provavelmente mentalizar algum xingamento, resolve pegar o celular: “Alô, mãe? Então, eu vou chegar um pouco tarde, mas não precisa se preocupar, eu tô bem. É que eu tenho que esperar outro ônibus... É mãe, eu tô em Austin!”. A cena protagonizada pelo universitário Ramon Guedes, 19 anos, morador de Comendador Soares, não é exclusiva do jovem conhecido pelos amigos como “o rei das sonecas”.

Da mesma forma que para morrer basta estar vivo, para dormir basta fechar os olhos. É seguindo essa linha de pensamento que, por necessidade, várias pessoas utilizam os meios de transporte como cama móvel. “Se eu não dormir no trem o meu dia está acabado, viro um zumbi”, afirma Elza Beatriz, 42, que se reveza entre o papel de mãe e técnica de laboratório na UERJ. “Quando não consigo um lugar para meu sagrado cochilo, o pessoal tem que aturar pelo resto do dia meu mau humor, fico no automático”, diz.

Se você não para por um minuto e dorme entre quatro e seis horas por noite, há de concordar que é difícil manter o ritmo a todo vapor. Os maldormidos de plantão sempre encontram uma forma de solucionar esse problema. “Para isso existe o ônibus, ele é a melhor invenção do homem, seguida de perto pelos engarrafamentos”, brinca a publicitária Glayciellen Gomes, 19 anos. “Inicialmente você nem percebe o quão maravilhosa é essa invenção, agora, basta você começar a trabalhar e estudar que aprende a dar o seu devido valor!”

Não é difícil encontrar, em diversos horários, aqueles que fazem do ato de dormir no transporte público uma verdadeira arte. “Eu pego o trem de 5h45, leia-se cheia de sono. Eu poderia usar o trajeto para pensar nos problemas, mas com certeza a coisa mais produtiva que faço é dormir! Aquele balancinho, então, só faz ajudar”, afirma Elza. O sono, que sempre fala mais alto, nem sempre é compreendido. “Diversas vezes eu acabo dormindo em pé, sem perceber. Quando você menos espera, a perna dá aquela fraquejada e você balança e acorda, mas rapidinho cai no sono de novo. As pessoas pensam que é jogo sujo para conseguir sentar, mas é cansaço mesmo”, conta Glayciellen.

Uma questão de lugar

Para um bom soninho é necessário alguns fatores favoráveis. O primeiro deles é encontrar um lugar no concorrido transporte escolhido. “Como eu pego meu ônibus aqui em Comendador, no ponto final, é fácil conseguir um lugar. Tenho até um banco favorito: é aquele em que eu sento sozinha – é um pouco egoísmo, e eu não curto cair em cima de ninguém. Fora que nele eu posso esticar as pernas, o que me faz dormir mais à vontade”, diz Glaycillen. “O chato é na volta, praticamente impossível conseguir lugar. E fora que todo mundo já ta suado e o ar não dá vazão então fica aquele cheiro enjoativo e terrível”, completa.
 

Josy Antunes
 
Josy Antunes, nossa companheira de redação, conta que no ponto final do Belford Roxo/Barra da Tijuca não é tão fácil assim conseguir um lugar para a soneca. “Eu chegava no ponto do 400 umas 5 horas, dependendo do meu estado de humor / físico e da importância de chegar cedo na faculdade”, explica. “O ponto final fica ao lado da estação Belford Roxo e eu chegava e já via formadas cinco filas de espera. Cada ônibus só sai se estiver lotado. Então há duas possibilidades: entrar na última fila e esperar uma hora. Ou entrar no fim da primeira fila, pegar o ônibus já lotado e enfrentar um trajeto de cerca de duas horas em pé”, diz.

Josy, que estudava no campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá, localizada na Barra da Tijuca, enfrentava em dias normais cinco ônibus “Isso porque eu economizava tempo e dinheiro”, relembra. E nos dias não normais acrescentavam-se no mínimo mais três viagens “Os dias não normais eram a quarta, quando eu fazia um curso em Santa Teresa, ou segunda que ia para Nova Iguaçu fazer alguma matéria pro Cultura NI, ou quando ia para a Zona Sul resolver ou fazer alguma coisa”, diz ela, que fazia todos os trajetos com um Rio Card emprestado.

“O pessoal da fila do 400 era tão ferrado quanto eu, nós já começávamos a dormir na fila”, conta Josy. “Todo ônibus que eu pegava era sono na certa. Foram raras as vezes em que eu não estava dormindo ao ir pra faculdade. Funcionava assim: ônibus para dormir, trajetos a pé para pensar. E os trajetos pra pensar eram divididos por horários: do ponto do BarraShopping até a faculdade, de manhãzinha, era pra pensar em problemas e afazeres. Já à noite, da Central até a 1º de Março, era pra ter novas ideias”. Pode parecer estranho, mas na falta de tempo, até os pensamentos precisam respeitar horários.

Sonecas mil

Todos os entrevistados concordaram que é praticamente impossível perder o bom e velho sono. “Para que isso ocorra, só se alguém estiver ouvindo música alta, ou o calor estiver muito, muito forte”, explica Elza. Pode ser um cochilo rápido de pé mesmo, sentado na escada do ônibus ou até mesmo no corredor. Pode ser o clássico abraçado à mochila e com a cabeça caindo no companheiro de soneca ao lado. Mas algumas vezes as tão aguardadas sonecas terminam rendendo mais do que a reposição das energias. Rendem boas histórias.
 
Na direita o olho ferido de Glayciellen Gomes, na esquerda a jovem já recuperada

As não tão breves sonecas já deixaram em Glayciellen marcas, literalmente. “Minutos depois de eu pegar o Mercado São Sebastião da Evanil, eu já tinha apagado. Só que tem detalhes engraçados que acontecem quando a gente dorme no ônibus, tipo tua cabeça fica caindo para um lado e para outro. Nesse dia minha cabeça estava, além de balançando, batendo na janela, e o sintoma posterior foi bem mais que uma dor de cabeça”, explica. “E nesse bate não bate na janela o motorista freia com vontade e eu vou direto com a cabeça na janela que estava aberta de frente para minha pessoa. Resultado: cortei o olho. Fiquei uma semana sem enxergar, parecia até uma japonesa”, relembra.

Outra história de Glayciellen se passou em um ônibus da mesma empresa, mas dessa vez não gerou nenhum trauma físico. “Eu estava atrasada e peguei o Central e adivinha, dormi. Só que foi com mais vontade porque ele tinha ar condicionado e o meu ainda não, esqueci que estava no Central e quando chegou à passarela que eu solto pensei: ‘Vou deixar rolar, afinal ele vai rodar e eu vou parar no ponto final’”, relembra. “Pura ilusão, eu devia mesmo de estar sonhando. Ele ia pra Central e não pra Penha. Nisso eu levantei correndo e desequilibrei, rodei a roleta e quase fui parar lá fora do ônibus, sorte que um homem me segurou”, diz ela que tinha acabado de acordar.

Com frequência os dorminhocos passam do ponto de ônibus ou da estação próxima a sua casa. “Meu noivo é mestre em passar do ponto. Quase sempre me liga falando que está em Nova Iguaçu porque dormiu demais. Quando íamos juntos pra Barra, sentávamos no ônibus e dizíamos um pro outro: ‘Boa noite’. Dormíamos e acordávamos só na Barra”, relembra Josy, que agora curte suas férias.

6 Comentários:

Felipe Branco disse...

Soneca no trem é clássico também, o problema é acordar estações depois.

Josy Antunes disse...

Muito bom, Hosana! Nunca tinha ouvido sobre casos de acidentes durante as sonecas. Uma pena o que aconteceu com a Glayciellen.

E é engraçado como cada pessoa acaba criando vínculos com os transportes que pega. Eu também tinha um banco preferido, trocadores preferidos, pessoas conhecidas nas/das filas, a forma de fechar a cortina da janela...

Agora, pra dormir em condução, tem que saber dormir! haha

Glayciellen disse...

Como diz a musiquinha que o arlindo canta na globo: "não é mole não meu irmão.."
Realmente criamos vinculos afetivos nos onibus em que pegamos todos os dias em nossos trajetos intermináveis..
Concordo que tem que saber dormir, já ri de muito principiante engraçado, que tenta se segurar pra não se render ao sono. É como eu digo, durmir em ônibus devia ser considerado uma arte!

Barbara Garcia disse...

Nossa.. ainda bem eu pego o onibus pra ir ate a facul é como o caminho é muitoooo longe.. da tempo de acordar faltando pouco pra chegar, mas o onibus sempre vai ser local pra cochilo..:)

Déh disse...

Ah, uma vez voltando de Caxias, eu CHOREI de rir de uma senhora que estava dormindo. A coitada só faltou deitar no colo da minha vó, que estava sentada ao seu lado. Sem falar das vezes que eu tive que segurar a mulher pra não cair quando o ônibus fazia curvas!
hahahahaha

Unknown disse...

Ótima matéria. Quem faz parte do EsqudrãoZumbi merece ler.

"A disputa é constante pra se ter um espaço.
Quem senta, acaba dormindo, vencido pelo cansaço..." (Marcus Vinicius)

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