Cinquenta dias perdidos

segunda-feira, 7 de março de 2011

por Josy Antunes/ Imagem: Google Maps

O Cineclube Digital é um encontro realizado mensalmente no Sesc de Nova Iguaçu, que coloca pessoas ao redor de um filme e, geralmente, diante de um debate sobre o mesmo. Foi no mês de fevereiro que tive a felicidade de conhecer o professor e compositor Sérgio Fonseca, organizador do Cineclube Vide o Verso, em Mesquita. Após a projeção do longa "O sucesso a qualquer preço", debruçada sobre meus joelhos num assento bem próximo ao debatedor, ouvi pela primeira vez a expressão "Eu não moro longe. Eu estudo longe". Naquele momento, eu era uma recém-formada com aversão ao nome Barra da Tijuca, e a rotina que me fazia acordar diariamente às 4 da manhã, para estar às 7 na faculdade. Em dois minutos, Sérgio Fonseca conduziu meu pensamento à certeza de que a principal referência não era a opinião da turma - "Olha, coitadinha, ela mora tão longe" - mas sim, a minha casa e a minha cidade.

Minha história com a Barra da Tijuca começou com a alegria de uma bolsa integral via Prouni. Com a alegria, vieram as regras: "Bolsista do Prouni não pode mudar de campus, nem de turno. Não pode trancar matrícula, nem ter média abaixo de 7". O primeiro período no Campus Tom Jobim, que fica dentro do Centro Empresarial Barra Shopping, foi ótimo. A animação sustentava minha energia. Meu pai me levava na carona da bicicleta até o Centro de Belford Roxo para embarcar na recém-criada linha 400 - Belford Roxo x Barra da Tijuca. Com o passar dos períodos, frequentar a faculdade se tornou um sacrifício físico, financeiro e mental. Cada vez mais, as filas e o trânsito pareciam piorar. A passagem passou a custar R$ 5. Meu pai não aguentava mais acordar tão cedo para me levar de bicicleta ao Centro. Havia dias em que eu quase invejava colegas de classe com salgados nas mãos. Nesse dias, comer um lanche gostoso significava não ter dinheiro para voltar. Eu fui uma legítima universitária ferrrada. E me lembrava dos bons tempos em que eu estudava em Nova Iguaçu, quase ao lado da minha casa. Tempos em que eu andava uniformizada, pegava ônibus de graça e comia qualquer coisa na cantina com apenas R$1.

Rafaela de Oliveira, uma moradora de Belford Roxo de 19 anos, também foi agraciada com uma bolsa do Prouni. Está cursando o primeiro período da graduação em administração, no turno da noite na Universidade São Judas Tadeu, que fica no bairro Encantado, na Zona Norte do Rio de Janeiro. "Todo mundo fala: 'Caraca, você mora muito longe'. Mas nem é tão distante. Eu vou de trem, aí é rápido", ameniza a estudante, que faz o caminho de ida em mais ou menos 1 hora e 40 minutos. Na volta, opta pelo ônibus, por lhe parecer mais seguro. "No primeiro dia de aula, eu fiquei com medo porque estava tarde e fiquei com medo do ônibus estar vazio, mas estava lotado", lembra Rafaela, que leva pelo menos duas horas para rever seu filho Kaio, que logo completará dois anos de idade. "Quando ele me vê, fica numa alegria só", garante ela, que o tem como maior motivação para os estudos.

Gisele Wandermur, também moradora de Belford Roxo, hoje faz um mestrado após passar por rotina parecida com a de Rafaela. "Eu fiz faculdade na UFRJ, campus Fundão, e minhas aulas começavam às 8h. Na época meu filho era um bebê, então minha rotina era a seguinte: acordava às 4h30, me arrumava, arrumava as coisas do Erick, e depois acordava e arrumava o Erick. Saíamos de casa às 5h40. Na época eu morava na Piam e tinha que vir para a casa da minha mãe em Farrula, para deixar o Erick. Saía da casa da minha mãe às 6h, pegava um ônibus até a Av. Brasil bem cheio, e na Av. Brasil pegava outro ônibus para o Fundão", explica Gisele, formada em Microbiologia e Imunologia. Durante sua formação, levava pelo menos duas horas para chegar ao campus. "Às vezes acontecia algum acidente ou então o trânsito ficava parado sem nenhum motivo aparente, daí eu levava mais tempo. Já cheguei a ficar cinco horas no trânsito em dia de chuva", declara ela, que aponta a criação do Rio-Card como um dos aspectos que facilitam sua locomoção atualmente. "Criaram as linhas de ônibus ligando a Baixada à Barra. Algumas delas passam por dentro do Fundão. Melhorou bastante", aponta Gisele, que não leva mais de uma hora para chegar ao mestrado, tamabém no Fundão.

Raciocínios a cerca de estudar ou trabalhar longe de casa implicam em muitos cálculos. Gisele calculava horários para conciliar sua agenda com os cuidados com o filho. Rafaela soma os gastos com passagens e chega ao resultado de R$ 300 mensais. Diego Jovanholi, morador do bairro Andrade de Araújo, em Belford Roxo, se assusta ao pensar que juntando todo o tempo que passa dentro dos transportes públicos, em um ano, 50 dias completos são dispensados no trânsito. "Meu primeiro emprego foi numa agência de web em 2003, em Ipanema. Eu tinha 15 anos. Antes disso, eu não saía de Belford Roxo. Muito raramente eu ia com amigos e primos a centros culturais no Rio: os famosos passeios ao CCBB", principia Diego, hoje com 23 anos, formado em Desenho Industrial e empregado numa empresa de tecnologia mobile na Barra da Tijuca. Em 2003 - quando ia de carona com o primo para Ipanema, às 5h30 - começariam as provocações que passaram pelos empregos de Copacabana, da Praia Vermelha e a faculdade na Lagoa: "Você mora em Belford Roxo?!", "Caramba, como você mora tão longe e está aqui todo dia?", "Por que você não vem morar aqui perto?". Diego, que aprendeu a gostar de chegar cedo no trabalho para tomar um mate e estudar, respondia citando o amor pela mãe, que não o permitiria deixá-la morando sozinha. Quando dividia as 24 horas do dia com emprego e escola, pegava o ônibus Caravele, ao entardecer, trajando camisa do Colégio Estadual Presidente Kennedy, que lhe garantia gratuidade. Aos 17, ao ingressar numa universidade particular, dobrou o empenho no trabalho, trocou as madrugadas por freelancers, e, aos poucos, funções técnicas foram substituídas pelas criativas. Hoje, o designer ainda vive uma relação de amor e ódio com os transportes públicos e os longos trajetos. O ônibus, diariamente, vira cama, casa e escritório público. "Isso quando não vou em pé", alerta o designer.

Claudiano Vasconcelos, 26 anos, pode comparar sua vida antes e depois de morar no Centro. "Eu morava em Geneciano, na periferia de Nova Iguaçu, onde os destinos das linhas são Belford Roxo e Nova Iguaçu, apenas. Por lá, quase não há comércio, então, para consumirmos bens essenciais como pão, precisamos pegar um ônibus para o centro do distrito de Miguel Couto", explica ele, cortando a fala com uma risada. Atualmente morando nas proximidades da Lapa, Claudiano cursa graduação em Comunicação Social - Publicidade e trabalha na mesma empresa que Diego Jovanholi. Faculdade e emprego na Barra da Tijuca. "Sobre qualidade de vida, não há como comparar. Quando eu morava em Nova Iguaçu, somada a ida e volta do trabalho, dava umas quatro horas e meia ou cinco de viagem. Hoje, no percurso casa, trabalho, faculdade, casa, perco por volta de duas horas dentro de uma condução no total. Há tempo para lazer, estudo e, até, tempo pra dormir", comemora o futuro publicitário que, na época em que passava boa parte de seu dia em transportes públicos, pensou em escrever um livro intitulado "A um ônibus de qualquer lugar". "O livro foi uma brincadeira, mas seria sobre tudo isso", finaliza Claudiano, que hoje mora, estuda e trabalha "perto".

6 Comentários:

Claudiano Vasconcelos disse...

Ótima matéria, Josy!

Lendo o texto, me dei conta de o quanto somos sortudos: passamos no PROUNI, trabalhamos, estudamos, criamos nossos filhos, temos amigos e uma base familiar que nos ajuda a suportar tudo isso, para nós e conosco. E não desistimos. Ainda que pareça injusto, talvez tenhamos mesmo que passar por isso, para nos tornarmos os adultos que somos hoje. É uma dura seleção social, natural, sei lá, mas me orgulho de fazer parte dos que não ficaram para traz, como tanto outros que nunca conheceremos e que têm estórias parecidas ou ainda mais árduas.

Este post é sobre superação =)

Gisele Wandermur disse...

Adorei o texto! Apesar de todas as dificuldades, olho para trás e não me arrependo de absolutamente nada! Acho que nós que sofremos tanto para ter uma boa educação conseguimos valorizar muito mais, sabe...

Iuri Andrade disse...

Trabalhei um ano no leblon, eram 4 horas perdidas quando o transito estava bom.

Anônimo disse...

Também divido a "alegria" de fazer parte do time prouni e morar longe da faculdade. Mas depois de ter lido os casos acima, dei-me conta de que sou sortuda. Porque moro em Comendador Soares e lá tem estação de trem, faço Engenharia de Petróleo na Gama Filho, campus Piedade, onde também tem estação de trem. Levo 1h pra chegar na Universidade, só que pra acabar com o gostinho de facilidade, trabalho no Centro do Rio-Cinelândia, trabalho de manhã depois vou pra faculdade e aproveito que chego cedo lá pra ficar na biblioteca. Em seguida vou pra aula. E só cehgo em casa às 23:30h. Mas o bom é saber que um dia, daqui a uns 3 anos todo esse esforço será recompensado. Porque se ainda assim não for, vai se fuder prouni, supervia, meu trabalho, a porra toda ! =D
Boa sorte a todos...
P.B

Eu vivo esse mesmo tipo de situação porque moro no Corumbá em Nova Iguaçu e vou estudar na UERJ de São Gonçalo e é uma canseira miseravel ainda mais para quem trabalha como eu

Claudiano disse...

Gi, muito bem dito: "Trás" e não "Traz"! heheh

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