Era da reciclagem

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

por Wanderson Duke

Estreia : Nine
Nine (Idem) EUA, 09. Direção de Rob Marshall. Roteiro de Michael Tolkin, Anthony Minghella, baseado na peça Nine de Maury Yeston e Arthur Kopitt, baseado no filme Fellini Oito e Meio, de Fellini. Com Daniel Day Lewis, Marion Cotillard, Penélope Cruz, Nicole Kidman, Judi Dench, Kate Hudson, Sophia Loren, Stacy Ferguson (Fergie), Ricky Tognazzi. Produção Weinstein. 118 min.


Estreou na última sexta-feira o aguardado Nine. Fellini Oito e Meio é meu filme do coração, meu e de todo mundo que trabalha de alguma forma com cinema. Não apenas é a obra-prima de um cineasta genial como foi Federico Fellini, como também é o melhor registro da demência que é rodar um filme, a montanha-russa emocional que toma conta de forma avassaladora do autor e o retrato de um artista em crise, quando é incapaz de criar e pensa que não tem mais nada a dizer. Realizado de maneira genial, altamente original e criativa e, principalmente, autobiográfica. Ele foi buscar em si mesmo as raízes e fontes de sua crise pessoal e artística e transformou tudo numa grande festa circense, que termina positivamente com aquela grande dose de humanidade, que só o italiano (e o cinema italiano) era capaz mesmo de passar.

Por isso é fácil entender porque o filme exerce até hoje, quase cinquenta anos depois de sua criação, um inacreditável fascínio em todos os artistas, a ponto de levá-los (mesmo famosos como Allen e Fosse) a realizar paráfrases, coisa nunca vista e sem paralelo referente a uma obra relativamente recente.

Mas é muito lógico para quem viu o original que, antes de tudo, Oito e meio é um espetáculo puramente cinematográfico, visual, que sintetiza praticamente a estética de um tipo de cinema que era considerado o melhor do mundo, o dos anos 50-60 (se acaba com a chegada da tevê aberta na Itália). Uma referência que este filme faz o tempo todo é o louvor ao preto e branco e tudo o mais que sucedia naquele momento, mas que para o espectador atual está completamente vago, distante e parece coisa da pré-história (sabidamente, jovens não se interessam pela história, nem mesmo a do cinema). Ou seja, fizeram um filme sobre cinema, só que baseado numa peça de teatro, ou seja, reducionista por definição, sobre uma época que as pessoas desconhecem e principalmente sobre um tema que interessa a só meia dúzia de pessoas do público: a crise pessoal e artística de um diretor de cinema. Ou seja, nada menos comercial, menos envolvente e abrangente.

Antes, porém, é preciso criticar a adaptação para o palco. Redução de sets (basicamente apenas um único, coisa que o filme também faz desnecessariamente). E principalmente, nada de sexo (apenas vagamente sugerido, a ponto de cortarem a sequência mais famosa do filme, aquela em que Guido mantém todas as mulheres de sua vida, desde a mãe até a esposa e todas as amantes, numa espécie de harém, onde acontece uma revolta e ele domina tudo com um chicote!). O espetáculo sobrevivia não por causa de sua trilha musical, que era menos do que medíocre, do que pela presença carismática de algum astro como era Raul Julia (que era porto-riquenho) e depois na remontagem Antonio Banderas (que é espanhol). Vejam o ridículo, fazer uma peça sobre um diretor tipicamente italiano como Fellini só que como americano confunde tudo mesmo, não sabe diferenciar estrangeiros, colocaram no papel central o britânico Daniel Day-Lewis, ótimo ator, claro, mas já obviamente pecando pela base (parece que com bom senso foi por isso que Banderas recusou o papel na tela). Como erram também em não colocar mais italianas no elenco (Penélope é outra espanhola, Marion francesa e assim por diante, chegando ao cúmulo de por uma dama do Império Britânico como Judi Dench fazendo uma estrela do Follies Bergère. Não importa que ela se defenda com a categoria de sempre, está errado em sua essência).

Menos ruim
Nine, a peça, é um travesti do filme. Nine, o filme da peça, é menos ruim porque o roteiro (co-assinado por Minghella, que morreu antes de vê-lo filmado) ao menos retorna ao filme, para colocar muita coisa novamente em imagem. Mas não há porque se fixar apenas num set montado num palco em Londres (o de Cinecittá, onde Fellini realmente filmava, aparece apenas para situar a ação e dar certo sabor). Rob Marshall, que soube adaptar tão bem Chicago, não teve a mesma sorte agora usando a mesma fórmula, ou seja, canções apenas em cena teatral, como se cinema não pudesse ter canções sem se tornar chato e incongruente. Ele tem medo da própria mídia e assim se condena. Não tem problema que corte metade da trilha porque ela era realmente fraca, mas o ruim é substituí-la por uma canção ridícula como Cinema Italiano (prestem atenção na letra, que é patética) ainda que tenha sido muito bem editada para virar número dançante para Kate Hudson (que, aliás, nada tem a fazer no filme).

Vocês vão dizer que de italiano eles têm a Sophia Loren, mas aí entra um elemento triste. Ela virou uma múmia, perdeu a voz que tinha (cantou em muitos filmes) e mal se desincumbe de uma canção de ninar, em que o diretor tenta o tempo todo cortar e esconder o rosto dela, sua falta de vitalidade. Eu mesmo pensava que, quando Sophia ficasse velha, viraria uma Anna Magnani. Enganei-me. Ficou um fantasma dos Natais passados.

Musa da pureza
Não tem muito cabimento comparar as intérpretes originais com as dessa refilmagem. Claudia Cardinale, no auge de sua juventude, fazia a musa, a inocência (mas também a pureza, coisa que foi cortada desta versão). Em seu lugar, Nicole Kidman, perturbada pelo botox, interpreta uma bela canção desanimada, sem graça. Penélope Cruz se defende bem e se aproxima da original Sandra Milo (mas nunca terá o subtexto do original, já que Sandra era também na vida real amante de Fellini, ou seja, fazia a si mesma!). Fergie, como a única cantora profissional do elenco, é a que tem melhor presença como a prostituta Saraghina e também a sorte de ter a melhor canção, Be Italian. Marion Cotillard, que fez Piaf, consegue passar como atriz a sensibilidade e a dor de uma esposa traída e depois se defender numa canção nova de strip tease (as duas únicas lembradas em premiações foram justamente Penélope e Marion).

Nine (no filme) não se refere tanto à carreira do diretor Guido (seria seu nono filme), mas à idade do menino Guido, que nunca teria amadurecido (uma simplificação psicológica típica de musical que Fellini jamais chegou a cometer). É engraçado que, ao escrever a crítica, são tantas as restrições, que ela resulta negativa. Mas apesar de tudo, tenho que confessar que o filme me deu certo prazer. Ver bons atores (mesmo Day-Lewis tem autoridade, presença, é um bom trabalho ainda que não italiano!), de rever Cinecittá, de confirmar a mão para o gênero do diretor Marshall (que pena que ele não foi capaz de criar em cima!). Acho que no fundo, eu fico lisonjeado de ver prestarem preito de admiração ao meu filme de cabeceira e ao escorregarem. No fundo, estão apenas confirmando a genialidade de Fellini e a mediocridade do cinema atual. Estamos mesmo na era da reciclagem, no pior sentido possível.

o link do trailer: http://www.youtube.com/watch?v=y_5_lzags3I&feature=player_embedded

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