Fronteiras da eternidade

segunda-feira, 12 de julho de 2010

por Renato Acácio

“Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua quimera; somente ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável”. Com esse trecho de Versos Íntimos do poeta simbolista brasileiro Augusto dos Anjos, cujo trecho é um dos três títulos de que se tem notícia para o mesmo filme, é narrado por Glauber Rocha sobre o primeiro plano do filme Di. O plano em questão é um travelling em direção à direita de carro pelas avenidas do aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, e convida o espectador a ir junto com o cineasta ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para o velório do pintor Di Cavalcanti, onde se passa uma das cinco locações totais do curta-metragem. Em contraposição ao primeiro plano, é feito um travelling em direção à esquerda sobre o caixão coberto por rosas vermelhas, onde repousa o corpo do pintor, para a câmera finalmente fixar no rosto de Di Cavalcanti, que tem em sua face um aspecto risonho e tranquilo. Já na junção desses dois primeiros planos é anunciada a intenção do filme, que tem a morte contemplada com outro olhar como temática, não só creditada à feição do pintor, pouco comum e obviamente livre da intervenção do realizador, mas também explicitada pelo movimento de câmera contrário ao anterior, na busca de um caminho inverso ao tratamento que é dispensado ao ritual fúnebre e também o registro desse tipo de cerimônia. Não obstante, a própria documentação audiovisual carrega um tom pitoresco no tipo de retratação da morte; um tabu, e é isso que Glauber Rocha parece pretender não só com a montagem, mas com todos os outros elementos constitutivos do filme. Ele realmente quer homenagear o pintor Di Cavalcanti, mas também quebrar esse tabu.

A filmagem do velório foi criticada pela imprensa e pela família do pintor, sendo inclusive o filme impedido judicialmente de ser exibido pela família de Di Cavalcanti. Valendo-se da crítica, Glauber emprega na edição um comentário contrário à sua postura e lê o mesmo em voz off, falseando uma direção de ator ao morto e ao fotógrafo com intuito de ironizar a opinião da imprensa e dos valores da sociedade relativos àquele acontecimento. Quando ele lê o trecho que o jornalista Edison Brenner escreveu para ele “1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12... Corta! Agora dá um close na cara dele!” ele opta por ilustrar a citação com o rosto do pintor sorrindo no caixão exatamente em close, como se na verdade ele estivesse dirigindo Mário Carneiro, fotógrafo que estava com ele durante o velório e que assina a fotografia de todo o filme. Glauber também insere na edição o comentário em resposta à impaciência da família durante as filmagens: "Não se preocupe. Esta é a minha homenagem a um amigo que morreu. Estou aqui filmando a minha homenagem ao amigo Di Cavalcanti. Agora, dá licença que preciso trabalhar". Isso esclarece a sua intenção do que o filme, pelo menos a princípio, queria ser, nada mais que uma homenagem ao pintor Di Cavalcanti. Entretanto, Glauber Rocha nunca foi convencional, transgrediu e polemizou, mesmo em uma homenagem ao seu amigo.

Um outro olhar sobre a morte
Em oposição ao velório do pintor onde é para ser esperado clima mórbido e de tristeza, o filme traça um paralelo entre a cerimônia no Museu de Arte Moderna com uma série de imagens picotadas de uma galeria de arte onde estão em exposição alguns de seus quadros, estabelecendo um ritmo pouco usual na linguagem tanto em documentário quanto na de ficção, em comparação com o que tinha sido feito até então. O confronto dos dois momentos, ou seja, o velório e as imagens da galeria de arte explicitam bem a disparidade de opinião do autor Glauber Rocha no tratamento da perda de algum ente querido ou, no caso de Di Cavalcanti, alguém digno de prestígio nacional e mundial, com o da sociedade e da igreja católica ali representada na filmagem do ritual fúnebre.

Esse confronto de universos de imagens se dá particularmente no ambiente da exposição, onde se tem uma montagem muito peculiar. Os planos são bem numerosos para o curto espaço de tempo, e em todo o filme, aliás, assim será, mas nesse momento específico ele reflete a ideia da vasta obra do pintor Di Cavalcanti, como se o filme se esforçasse em dar conta do tanto de material produzido por Di. Os planos, além de numerosos, não se preocupam em ter um raccord, ou uma coerência em si. Ora vemos um mulato dançando, representado pelo ator Antônio Pitanga, e sorrindo na frente dos quadros (talvez uma representação do próprio Di Cavalcanti que pontuou sua obra retratando mulatas), ora temos planos detalhados das pinturas; por vezes há travellings pela galeria e planos detalhes de gravuras do pintor em livros.

A linguagem da montagem feita nesse universo remeteria nos dias de hoje talvez a uma montagem de videoclipe, videoclipe este concebido para uma declaração de amor e admiração de Glauber Rocha à obra e a pessoa de Di Cavalcanti.

Os movimentos de câmera desse paralelo discutem também a discrepância no que tange à natureza de uma prestação de uma última homenagem dos amigos e parentes no velório, e a do cineasta. Enquanto as tomadas feitas no Museu de Arte Moderna os planos são quase estáticos, ou quando muito com movimentos suaves, nas tomadas na galeria de arte a câmera se recusa a ficar parada, vibra, faz diferentes zooms, treme e exalta a obra e a personalidade do pintor. A montagem picotada das tomadas da galeria dá ainda mais ritmo, velocidade, e vivacidade, quando se une aos movimentos de câmera inquietos, se opondo radicalmente ao outro paralelo, que remete ao luto, aos comportamentos comedidos, aos rostos tristes, trajes sóbrios e também ao procedimento da igreja católica, no seu tipo de celebrar a morte. Isso fica bem claro quando ele opta por inserir em meio ao seu “videoclipe” na galeria, vários planos detalhes do mesmo crucifixo, e sob diversos ângulos, que está sobre o caixão do pintor.

Pintor e cineasta
A partir do momento em que o cineasta Glauber Rocha começa a falar da sua história pessoal com o pintor Di Cavalcanti, ele se insere como personagem dentro do filme. Durante o filme todo Glauber se menciona, mas só a partir de então ele surge humanizado, longe do estereótipo do cineasta aproveitador que é próprio das referências nos primeiros planos, ele (re) surge com um discurso intimista, sincero, menos debochado, mais realista e menos poético. É a primeira vez que dá para reconhecer também claramente a imagem de Glauber Rocha na película.

As imagens da exposição com os quadros do pintor que se alternavam com o velório, dão lugar nesse momento a uma nota de um jornal não identificado que diz: “Glauber Rocha filmou tudo: o velório e o enterro. Mas foram poucos os amigos no adeus a Di Cavalcanti sepultado ontem no cemitério São João Batista. Agora o pintor do Catete é só uma rua na Barra.” Tal inserção desse plano acaba por transformar definitivamente o processo de feitura do filme, sendo esse um tema que flerta com a metalinguagem, bem como o realizador que a essa altura da narrativa assume um papel co-protagonista dentro do curta-metragem. Talvez o símbolo dessa metalinguagem se dê no rapidíssimo plano de um “start”, símbolo que era usado no passado em cinema para sincronizar o áudio com a imagem e se tornou um emblemático ícone do universo cinematográfico. Tal símbolo ao ser inserido traz ao espectador a consciência do filme nele mesmo, e metaforiza todo o trabalho da produção e sentido do curta.

Nesse momento a continuação dos inserts estilizado das obras de Di Cavalcanti antes do plano em travelling da nota do jornal, seguido de referências políticas, como o papel escrito “Viva JK!” se referindo ao médico e presidente brasileiro que governou o Brasil entre Janeiro de 1956 a Janeiro de 1971, sobre o nome de Jango, como ficou conhecido João Goulart, último presidente brasileiro antes do Golpe militar de 1964, continuam. Mas se revezam também com a imagem do cineasta Glauber Rocha atuando para as lentes do fotógrafo Mário Carneiro folheando seu material pictórico, lendo publicações que dizem respeito ao pintor, recriando seus quadros com seus amigos em forma de marionetes, enfim, o cineasta conduz sua montagem frenética com o intuito de revisitar a vida e a obra de Di Cavalcanti à sua maneira. É importante notar que a velocidade que a montagem do filme impõe nesses momentos, além de tentar recriar o estilo de Di Cavalcanti, ou seja, não realista, também corrobora com a narração verborrágica de Glauber Rocha que a todo o momento fala rápido e sem a preocupação de medir suas palavras. Pode-se dizer que a montagem nesses momentos traduz em linguagem audiovisual o livre fluxo de consciência do discurso do cineasta.

Do velório ao enterro
Apesar das inovações de linguagem em termos de montagem, o curta Di não foge a uma ordem cronológica dos fatos, isto é, ele mantém uma linearidade que acaba apenas sendo totalmente interrompida em momentos especiais, que funcionam mais como tempos oníricos adotados por razões estéticas e que reiteram o texto pulsante que Glauber Rocha narra. Posto isto, a montagem bruta do filme se estrutura na chegada ao velório, a partida e a chegada ao cemitério São João Batista no bairro de Botafogo e finalmente no enterro do corpo do pintor. Tais momentos funcionam como vírgulas entre uma seqüência e outra. Como por exemplo, ao serem mostradas as preparações para transportar o corpo de Di Cavalcanti do Museu de Arte Moderna para o Cemitério São João Batista para o enterro. No que o caixão é colocado no carro, tem-se novamente um travelling de carro e nesse momento à noite, que figura em seu centro, uma casa com cores vibrantes e luzes coloridas, o que denota claramente um ambiente de boemia, sensualidade e vida noturna, algo atribuído a ele nos planos seguintes em voz off agora de volta aos acontecimentos na chegada ao cemitério. Di Cavalcanti era assumidamente boêmio, assim como Glauber Rocha, e seu amor às mulheres transbordava da sua vida pessoal para sua arte, cuja retratação da mulher brasileira, a mulata mais especificamente, era sua temática principal.

O enterro de Di
A sequência do enterro no cemitério São João Batista é aberta com uma contra-plongé focalizando a cruz da entrada do cemitério. O propósito aqui não é só localizar o espectador em espaço e tempo, uma vez que a montagem do filme dá saltos em tempo e espaço a todo o momento, mas também perpetuar a fixação do filme pelo crucifixo, pelos dogmas da igreja católica, e exacerbar assim a diferença entre o que Glauber Rocha acha que Di Cavalcanti merece como última homenagem e o que ele de fato obteve. Essa injustiça, na visão de Glauber, é corroborada também pela natureza do seu discurso, enquanto são mostrados os planos de chegada dos amigos e familiares no cemitério em Botafogo.

A mulata que figura no centro de boa parte dos planos onde as pessoas caminham em direção à sepultura é uma modelo convidada por Glauber Rocha, como se soube posteriormente. Ao inserir a modelo representando um tipo de papel específico, Glauber Rocha mais uma vez transgride, dessa vez os limites de gênero de Ficção e Documentário. A modelo em questão vem a ser uma de tantas mulatas representadas por Di, e que toma vida depois de uma incessante maratona de representação da mesma através da montagem do filme. Dessa vez mais viva, retratada com mais calma.

Glauber Rocha também leva às últimas consequências seu papel de coprotagonista do filme e nesse momento temos lado a lado o pintor e o cineasta, os dois protagonistas do filme, juntos em um mesmo plano. O fotógrafo ao ser instruído a ficar numa posição estratégica, do alto enquadrando o enterro em plongé, faz com que seja possível ver o cineasta do lado direito do caixão, na marcha até o sepultamento. Nesse plano também temos mais uma vez a reiteração da discordância da maioria dos presentes ali no enterro. Alguns olham para câmera com olhares de desaprovação.

A partir de então a montagem nessa parte da sequência limita-se a focalizar os rostos chorosos e de luto da multidão. Inclusive a da modelo contratada que é a mais exaltada na sua expressão. Um pequeno paralelo entre as mulatas é traçado aqui também, através da montagem. A mulata chorosa do momento do enterro, aos soluços, de óculos escuros e a mulata de um quadro de Di Cavalcanti. A mulata da sociedade, a mulata católica e a mulata “Dicavalcantiana”, a mulata “Glauberiana”. Feito isto o corpo é enterrado e há o corte final. Uma colagem de gravuras de Di Cavalcanti com os créditos finais do filme.

À eternidade
Di de Glauber Rocha impressiona não só pela sua montagem e ideia original, mas por ser mais profundo que um filme documentário sobre a morte de um pintor. Di reflete as fronteiras de gênero, de sociedade, de arte, e também as do tempo. “A descoberta poética do final do século será a materialização da Eternidade”, registrou ele em texto mimeografado, distribuído na sessão do filme em 11 de março de 1977 na Cinemateca do MAM, na primeira exibição do seu curta-metragem. Ao fazer Di, Glauber Rocha não eternizou apenas a obra de Di Cavalcanti, mas também a sua própria, realizando mais um premiado filme da cinematografia mundial. Morreram os homens, ficaram as suas obras.

2 Comentários:

Raul Fernando disse...

O filme está disponível em 2 partes no Youtube.

http://www.youtube.com/watch?v=p7GegIT-yBM
http://www.youtube.com/watch?v=CqDgv-L4u5Q

Josy Antunes disse...

Muito bom o texto e muito bom saber que está disponível no YouTube.

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