O zelador de nossa memória

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Equipe Jovem Repórter / Fotos: Josy Antunes


O secretário de Cultura e Turismo de Nova Iguaçu Écio Salles sugeriu que fizéssemos um ciclo de grandes entrevistas, “como aquelas da Caros Amigos”. “E elas devem começar com o professor Ney”, sugeriu. E quem conhece essa enciclopédia iguaçuana entende perfeitamente as orientações do sucessor de Marcus Vinícius Faustini, ele próprio um outro admirador do trabalho de resgate histórico e preservação da memória da Baixada Fluminense realizado pelo professor.

Nascido no Hospital do Iguaçu no dia 27 de setembro de 1940, Ney Alberto Gonçalves de Barros é o filho mais velho de Nilton Gonçalves de Barros e Leopoldina Machado Barbosa de Barros. “O colégio Leopoldo, do qual ela é uma das fundadoras, é uma homenagem a ela”, contou o professor no dia em que reunimos cerca de 10 jovens repórteres na sua sala, na entrada do Espaço Cultural Sylvio Monteiro.


A primeira impressão que se tem do professor Ney é a de que ele é um perfeccionista, que faz um uso preciso dos fatos e das palavras. “Sabe por que um dicionário tem aquela grossura toda?”, perguntou ele ao perceber o uso impróprio da palavra “contemporânea” por um de nossos entrevistadores. “Inclusão digital é exame de próstata”, protestou, acusando uma das muitas agressões à língua cometidas pelos formuladores de políticas. “E política pública é pleonasmo, pois toda política é pública”.

Professor Ney: Quando chegaram ao Brasil, os navegadores portugueses achavam que éramos uma ilha. Em 1501, uma série de navegadores percorreu nosso litoral, dando nome a cada uma de nossas praias de acordo com o dia ou a posição geográfica. Foi assim que surgiu a Baía de Todos os Santos, descoberta no dia primeiro de novembro. Eles foram descendo e no dia primeiro de janeiro de 1502 acharam que as águas da Guanabara eram de um rio e deram o nome de Rio de Janeiro.

culturani: Como era Nova Iguaçu quando o senhor nasceu, na década de 1940?

Professor Ney: Eu não sei como era Nova Iguaçu no começo dessa década, porque eu nasci em 1940. Mas de 1946 pra cá eu sei de alguma coisa.

culturani: Nessa década, ainda temos uma Nova Iguaçu marcada pela laranja. Mas é justamente nessa época que deixamos de ser a região dos Laranjais.

Professor Ney: O auge da laranja foi de 1931 a 1939. A decadência começa com a guerra, que impede a circulação dos navios, o grande comércio internacional. A laranja que produzíamos era para exportação. Com a guerra, o mercado da laranja ficou restrito a São Paulo, Minas, Uruguai, Argentina.

culturani: Foi por isso que acabou a laranja?
"A laranja que produzíamos era para exportação. Com a guerra, o mercado da laranja ficou restrito a São Paulo, Minas, Uruguai, Argentina."
Professor Ney: Deu uma praga, chamada mosca do mediterrâneo. Essa mosca fura a laranja e faz um funil no qual bota os ovinhos, que por sua vez azedam a fruta. A praga se espalhou pelos laranjais e o governo tentou salvar a situação com um banho de inseticida. Mas além de matar a mosca, eles mataram as abelhas, os marimbondos, as borboletas. Foi um desastre ecológico. Sumiram até os passarinhos, que se alimentam de insetos, lagartixas. Nesse desastre, morreram também as joaninhas, que são os predadores naturais da fumagina, que é uma praga que quando dá no laranjal a folha seca, parece que tem uma fuligem escura. Com o desaparecimento da joaninha, a fumagina se alastrou.

culturani: O cacau fez de Ilhéus uma cidade cosmopolita, com a presença de suíços, ingleses, etc.. Esse foi o caso de Nova Iguaçu no período da laranja?

Professor Ney: Não. No auge da laranja, apareceram uns judeus em Nova Iguaçu, além da comunidade árabe, formada em sua maior parte por libaneses, que desde aquela época tinha uma forte presença no comércio. Mas a produção da laranja era dominada por portugueses e italianos. E foram os italianos que começaram a sofisticar a arquitetura da cidade. Um exemplo disso é o Sylvio Monteiro, mandado construir por um italiano.

culturani: Mas no momento em que tem a débâcle da laranja a cidade vai à falência? Ela quebra com o fim do ciclo da laranja, como aconteceu com Ilhéus, quando acabou o ciclo do cacau, e com o Amazonas, quando acabou o ciclo da borracha?

Professor Ney: Em geral, as elites investiam em imóveis na Zona Sul do Rio de Janeiro ou na região serrana. Mas essas elites resolveram a crise criando grandes loteamentos com a cumplicidade da prefeitura, que, preocupada com a queda da arrecadação, os libera à moda Bangu, sem saneamento, sem água, sem iluminação, antecipando a crise urbana que vivemos até os dias de hoje.

culturani: Há marcas desse período na cidade?


Professor Ney: Estamos num deles (o espaço cultural). Onde era o bingo, onde hoje tem um Santander, era o galpão de laranja da família Andrade. Onde hoje é a casa de saúde Nossa Senhora de Fátima era a casa da família Panella, que também plantava laranja.

culturani: Quantas famílias dominavam a laranja?

Professor Ney: Eram umas cento e tantas. Tenho uma relação de 1934 desses laranjeiros. Depois forneço a vocês.

culturani: A gente pode identificar as famílias daquele tempo pelo sobrenome?

Professor Ney: Aqui tem uma rua chamada Comendador Francisco Baroni, que foi exportador de laranja. Ele tinha um barracão onde hoje é o Top-Shopping e um outro onde hoje é a Peaugeout. O Dr. José Nogueira Coelho, um dos proprietários da Grnfino, casou-se com uma das netas do comendador: Luciana Baroni Coelho, filha de Francisco Baroni Filho. A Granfino começou onde era a igreja Nova Vida, que antes foi uma casa de show, a Signos. Antes de ser Granfino, aquilo era um barracão de laranja.

culturani: Ou seja, o centro de Nova Iguaçu era um grande entreposto de laranja?

Professor Ney: Não, tinha galpão em várias partes da cidade: Marapicu, Cabuçu, Santa Rita, Lote XV, que hoje é Caxias. O galpão ficava em geral perto da casa grande da fazenda.

culturani: Depois que acontece a débâcle da laranja, para aonde vai essa elite?

Professor Ney: A maioria dessas pessoas foi para o comércio. Por exemplo, Vaz Teixeira montou uma série de lojas de suco de laranja numa época em que não havia Coca-cola. Faturou horrores aqui. A família Baroni criou a Evanil. Também houve famílias que foram viver da renda do aluguel de suas propriedades.
"O município era imenso e foi todo loteado. Os impostos cobrados desses loteamentos geraram muita renda para o município."


culturani: Houve um período de falência, em que essa elite estava desesperada, sem dinheiro nenhum?

Professor Ney: Não. Porque o município era imenso e foi todo loteado. Só em 43 que Caxias se emancipa. Só em 47 que Nilópolis se emancipa. Os impostos cobrados desses loteamentos geraram muita renda para o município.


culturani: Quem comprava esses lotes?

Professor Ney: O governo federal foi um dos grandes compradores desses loteamentos.

culturani: Eu vi uma telha da Ludolf aqui. Uma fábrica de material de construção em Mesquita.

Professor Ney: Vocês sabiam que Mesquita era chamada de Cachoeira? Em 1894 deram o nome de Jerônimo de Mesquita, um latifundiário da época da escravatura. Onde era a curva de Mesquista passou a ser Juscelino depois que inauguraram a estação do trem. Aí todo mundo fala que mora em Juscelino. Ora, as pessoas não moram na estação. É a mesma coisa na praça que já foi da Telerj, agora é da Telemar e daqui a pouco vai ser chamada da Oi.

culturani: O senhor já foi à cratera do vulcão?

Professor Ney: Os documentos antigos chamam o que hoje conhecemos como Varginha de Pedra do Quilombo. E nos documentos antigos da área, aquela área era chamada de Kwanza, que era um rio de Angola.

culturani: Mais não ha documentação, nenhum tipo de registro?

Professor Ney: Tem o seguinte: o bairro do K-11, quando começou, não é onde é hoje. Ele deve ter descido por causa da estrada de ferro, porque as informações que temos sobre esse quilombo é que ele fica lá pra trás, em um lugar chamado Mata-fome, que os antigos falam que foi criado pelos escravos. Uma prova disso é que identificaram túmulos quilombolas por trás do Afrânio.

culturani: Como era a presença dos índios na Baixada?

Professor Ney: O Rio de Janeiro tem quatro baixadas principais: Baixada Fluminense, Baixada de Campos dos Goytacazes, Baixada de Sepetiba e Baixada de Araruama. Nessas baixadas viviam os índios Tupinambá, também conhecidos como Tamoio. Esses indígenas foram todos mortos, todos exterminados. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi criada para destruir a aliança entre os franceses, que invadiram a Guanabara em 1555, e os índios. Foi nessa época que começou a tradição de bala perdida no Rio de Janeiro. Estácio de Sá foi morto com flecha perdida.

culturani: E a presença do negro na Baixada? É verdade que aqui é um lugar de resistência desde a época da escravidão?

Professor Ney: As sesmarias montaram engenhos de açúcar e água-ardente, mas como, depois do extermínio de quase toda a população indígena, os poucos nativos que restaram não puderam ser mais escravizados por uma lei baixada no dia 1 de abril de 1680. Os donos das sesmarias começam então a adquirir escravos para trabalharem nos canaviais. Os primeiros que chegam aqui são provenientes da Guiné, e chegam em grandes quantidades.

Os relatos policiais de 1873, 1874 nos dão conta que a abolição de cativeiro iria acabar de qualquer maneira, porque havia seguidas rebeliões de escravos, sempre seguidas de mortes e destruição das fazendas. Que a sociedade não ia aguentar e eles iam acabar com a escravidão independentemente da Lei Áurea. Na verdade, quase todas as leis abolicionistas eram impostas pela Inglaterra, que tinha feito a revolução industrial e queria que as mercadorias decorrentes da industrialização fossem vendidas em todo mundo. Se o escravo se tornasse assalariado, poderia se tornar consumidor. Os escravos libertos procuram a Baixada, porque eles só podiam comprar terrenos aqui, uma área não tão valorizada quanto o Méier, Santa Teresa, Vila Isabel.

culturani: São os negros rebeldes?

Professor Ney: Não, estou falando de depois da escravidão, depois da Lei Áurea, quando muitos morros aqui da Baixada foram ocupados paralelamente ao do Salgueiro, Borel e Complexo do Alemão. Eles vieram para cá porque não tinham dinheiro para comprar um propriedade. E a Baixada sempre foi refúgio. São João de Meriti e Nilópolis eram refúgio de judeus, esses que agente chama de cristãos novos, perseguidos pela Santa Inquisição. Tanto que lá em São João até hoje tem o cemitério israelita. Um sinal da presença desses cristãos novos aqui na Baixada é o pequeno número de igrejas existentes aqui, se a gente comparar o número de templos na região com o que se vê em Paraty, São João Del Rei, Ouro Preto, onde há quase uma igreja em cada esquina. Os cristãos novos não tinham mania de fazer igreja porque não eram católicos, mas seguidores de Moisés.

culturani: Existiu o cemitério de escravos em Tinguá?

Professor Ney: Não. Ali é o seguinte: depois de 1891, a capital veio pra Maxambomba e a antiga Vila de Iguaçu passou a ser chamada de Iguaçu Velha. Nova Iguaçu é onde era a antiga Maxambomba. Enquanto existiu a Vila de Iguaçu, havia ali a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Tem escravos enterrados lá, mas também gente rica, proprietária de escravos. Por exemplo, o Comendador Bento Domingues Vianes tinha uma escrava que cuidava das crianças e acabou sendo enterrada junto com a família.

culturani : É verdade que a Família Real tinha o costume de vir para Nova Iguaçu, para viver seus relacionamentos extraconjugais?

Professor Ney: Mentira. Quando inauguraram São Bernardino, Dom Pedro já estava morto há muito tempo. Só se Chico Xavier o levou para lá. A Condessa do Iguaçu, que era proprietária da Fazenda de Madureira e do Morro Agudo, era filha de Dom Pedro com a Marquesa de Santos. Mas a Marquesa de Santos morava do lado da Quinta da Boa Vista. Para que ele viria até aqui?

culturani : Como é a história Instituto Histórico e Geográfico da cidade?

Professor Ney: O instituto começou porque uma vez nós descobrimos uma carta assinada pelo Duque de Caxias e fomos mostrá-la para um dos diretores do Arquivo Nacional e ele simplesmente tomou os documentos da nossa mão e disse que não podíamos ficar com ele. Eu fui no Patrimônio Histórico do Arquivo Nacional e disse que tinha muitos documentos antigos e eles me orientaram a criar uma sociedade registrada em cartório para ficarmos com eles. Mas os institutos tinham muitos velhos na direção e agora vamos reestruturá-lo, pois o último remanescente desse grupo morreu no ano passado. Infelizmente, o Chico Xavier já morreu e não pode baixar uma procuração.

culturani: A Baixada foi um lugar de resistência negra e judaica. E os índios, também correram para cá? 


"Se fizerem escavações naquela área todinha da Jacutinga, vão encontrar artefatos indígenas, como pontas de flechas, cerâmicas etc."
Professor Ney: Por que as capitanias não deram certo? Um dos motivos foi os ataques dos índios. A tribo mais poderosa do Estado do Rio era aqui em Jacutinga. O território deles ficava em volta da igreja da Prata. Eles eram brabos, tanto que foram exterminados. José de Anchieta pregou a matança dos indígenas porque os indígenas se associaram aos franceses, que por sua vez eram seguidores da reforma de Lutero. José de Anchieta escreveu dois livros falando nisso. Se fizerem escavações naquela área todinha da Jacutinga, vão encontrar artefatos indígenas, como pontas de flechas, cerâmicas etc. Porque aquela área ali era toda pantanal, com exceção dos morros. No brejo tem jacaré, marreco, muito peixe, muita bromélia .

culturani: E esses Jacutinga resistiram?

Professor Ney: Os Jacutinga foram todos exterminados.Eles e os Jaquaperi, que vieram de Japeri, os Curuçá, que deram origem a Itacuruçá,e os Paúnas, que deram o origem à Pavuna. Eram todos pertencentes ao grupo Tupinambá, só que cada um tinha um nome local. Quem quiser montar um museu, é só fazer arqueologia e desenterrar essas coisas.

culturani: Quando o senhor tinha seus 20 e poucos anos, como era a boemia aqui?

Professor Ney: Naquela época, a boemia era na base da seresta, que virou coisa cafona, não é? Deixa eu explicar o porquê. Nós tínhamos muitos seresteiros e naquela época se falava serenata, que vem do sereno da madrugada. Você já ouviu falar de dor de cotovelo? Existia um compositor chamado Lupicínio Rodrigues, que só gostava de mulher sem-vergonha. Ele marcava com a menina lá pelas 22 horas, as mesas dos botequins eram de mármore e ele chegava cedo e metia o cotovelo no mármore e daqui a pouco passava a menina com outro cara no botequim e ele já fazia uma musiquinha. Só que a serenata, que é de origem medieval, era uma cantoria pra conquistar a mulher amada. Só que quando deixou de ser serenata pra ser seresta, eles passaram a cantar músicas de Lupicínio Rodrigues. Ninguém ia tentar conquistar mulher cantando sobre vingança, porque acontece o seguinte: todo compositor do frio, com exceção dos grandes clássicos da música internacional, é mais raivoso. Veja as músicas do Paulo Vanzolini, um compositor de São Paulo: “cena de sangue num bar da Avenida São João". Bem diferente de “as rosas não falam“, do nosso Cartola.

culturani : Existia muito desse calor aqui em Nova Iguaçu?

Professor Ney: Ah, Nova Iguaçu no tempo da laranja era muito rica. Até 1964, a gente frequentava o teatro do Rio, pois o primeiro grupo que surgiu aqui foi em 1955. Muitos circos se instalaram aqui. Hoje em dia nem mais existe terreno para isso.

culturani : O que a juventude de sua época fazia em Nova Iguaçu?

"O interessante é que o baile acontecia nos sobrados e na rua o povo dançava em baixo, pois quase não havia carro."
Ney Alberto: Olha, geralmente todos os clubes tinham um negócio chamado domingueira. O pessoal dançava muito. Mas a dança era aquele negócio de mão na cintura. Porque o Esporte Clube Iguaçu era aqui e geralmente eram bares com orquestras. O interessante é que o baile acontecia nos sobrados e na rua o povo dançava em baixo, pois quase não havia carro.

culturani: E como era o movimento nessa época? Tinha gente na rua?

Professor Ney : Não, Nova Iguaçu só passou a ser movimentada da década de 1970 pra cá. Eu sou capaz de afirmar que Nova Iguaçu só pegou movimento depois de 75, quando criaram o Calçadão.

culturani: Esses bailes misturavam classes? Eram bailes frequentados por que tipo de público? Jovens? Patrões misturados com empregados?

Professor Ney: Aqui não tinha disso. Aqui, se você fosse jogar sinuca, podia jogar com rico, podia jogar com pobre. Aqui era região de gente braba. Se você quisesse entrar no clube e fosse barrado, podia acabar com a festa. O último amigo meu que foi barrado, deu uma navalhada nas costas do diretor do clube .


culturani: Havia algum movimento de esquerda organizado aqui em Nova Iguaçu nos idos de 1960?

Professor Ney: Primeiro temos que compreender a História do Brasil para entendermos a local. Em 1945, acabou o Estado Novo, uma ditadura que durou de 1937 a 1945, período em que Getúlio Vargas governou sem congresso, nomeando governadores e prefeitos e cometendo arbitrariedades como mandar Olga Benário, a mulher de Luís Carlos Prestes, para a Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Durante o Estado Novo, não houve um movimento oposicionista. Mas na década de 1960 seria diferente. Em 1962, os integralistas promoveram o chamado “Quebra-quebra da Baixada”, saqueando os supermercados da região durante uma greve de ônibus.

culturani: Mas depois do golpe, a Baixada vai acolher os militantes de esquerda que caíram na clandestinidade?
 

Professor Ney: Principalmente Mesquita, que será o quartel general de combate à ditadura.

culturani: Quem estava lá? Quem eram essas pessoas que participavam desse quartel general de combate à ditadura?

Professor Ney: Isso só se puxar a relação das pessoas, mas Mesquita era chamada de Moscouzinho.

culturani: Mas se via a presença da ditadura aqui, os militares vinham para cá?

Professor Ney: Sim, os militares ficavam aqui, e a Baixada inteira foi um lugar de resistência.

culturani: O senhor teve algum amigo torturado?

Professor Ney: Conheci muita gente que sumiu...

culturani: O senhor foi torturado?

Professor Ney: Eu não. Não sei se era pelo motivo de eu ser conhecido ou por causa do meu anjo da guarda, mas respondi cinco inquéritos militares. Em um deles, fiquei 35 dias no Galeão.

culturani: Quais os códigos que o senhor usava na ditadura?

Professor Ney: Não conversava por códigos, não.

cultura: E os outros inquéritos, como foram?

Professor Ney: Um deles foi por causa de uma pichação. Incentivei um amigo a derrubar o muro lá da Estação. No AI-5, fui preso durante uma grande onda de prisões, sem que ninguém explicasse nem a mim nem aos outros presos a razão para estarem levando a gente.

culturani: O senhor foi preso meses depois, dias depois do AI-5?

Professor Ney: Não, foi na noite mesmo em que ele foi publicado.

culturani: E o que o senhor fazia em 68 para ser taxado de subversivo?

"Fui preso quando cheguei em casa. Se soubesse que iria acontecer isso, teria dado aula até de madrugada."
Professor Ney: Um monte de coisa: eu dormia, escovava os meus dentes.

culturani: Qual era a posição do senhor, quais atividades do senhor nessa época?

Professor Ney: Eu era professor. Sou professor desde 1954. Em 1968, eu dava aula em Nilópolis em dois lugares: no curso Facipis e no colégio da Campanha. Fui preso quando cheguei em casa. Se soubesse que iria acontecer isso, teria dado aula até de madrugada.

culturani: O senhor foi torturado?

Professor Ney: Não, no AI-5 ninguém era torturado. Era só uma medida para evitar uma reação às medidas de exceção. Não tenho conhecimento de nenhuma tortura não.

culturani: Mas o AI-5 não é chamado de o golpe dentro do próprio golpe? De que forma os militares desrespeitaram os direitos humanos ?

Professor Ney: Foi um golpe dentro do próprio golpe, sim. Para você ter uma ideia, advogado não tinha importância nenhuma. Você tinha que conhecer algum militar lá dentro para soltar, etc.

culturani: E o senhor não pediu nenhum tipo de favor?

Professor Ney: Eu não gosto de pedir favor, pra não ficar devendo, né?

cultura: E a participação da Igreja na resistência?

Professor Ney: Aqui começou com o D. Adriano.

culturani: Que chegou aqui quando?

Professor Ney: Ele apoiou os “Amigos do Bairro”, mutirões, ocupações de terra. Foi até sequestrado em 75. Quem deve ter toda essa documentação é o Centro de Formação de Líderes. Na verdade, meu interesse aqui vai até a emancipação de Caxias em 46.

culturani: O senhor estudou Tenório?

Professor Ney: Um pouco. Ele foi vereador daqui de Nova Iguaçu. Saiu fugido daqui...

culturani: Mas qual a razão?

Professor Ney: O Tenório era metido a valente e duas pessoas juraram que se ele pisa aqui iriam matá-lo. Uma era uma mulher chamada Carmelita Brasil, que foi a primeira vereadora daqui do município. Tenório era um cara até pacífico. Quem matou o delegado de Caxias foi um de seus capangas, pois o delegado iria tirar a vida dele.

culturani: Os nordestinos vieram pra cá nessa época do Tenório?

Professor Ney: Eles vieram para cá por causa da fome desde a época do Getulio Vargas.

culturani: E as milícias?
Professor Ney: Negócio de milícia é coisa recente, deve ter oito anos, de oito a dez anos. Em 1981, traficantes não andavam armado no morro, como pude atestar nos 15 dias que passei na Mangueira naquele ano. Não vi um cara armado na Mangueira. Eles sempre andavam com revólver, mas por debaixo da camisa. Esse negócio de andar com fuzil é coisa recente, pode ter certeza. Passei 15 dias com um amigo meu na Mangueira. A gente andava por todo lado, tomava Coca–cola na rua ali, comia churrasco ali, a gente não via ninguém portando arma. E agora também só se sabe porque tem gente filmando de longe.

culturani: Voltando lá pra época de boemia do senhor. O senhor passou rápido pela época de boemia.

Professor Ney: Não, não acabou ainda. Até hoje eu ainda frequento escola de samba, curto tudo, não discrimino nenhum tipo de música. Agora tive que reduzir um pouco o ritmo, porque não dirijo desde 1990.

culturani: Por quê?

Professor Ney: Porque sou cego desta vista, e tem que pagar IPVA, abastecer, trocar pneu furado, entendeu? Tem blitz de madrugada na rua, você não sabe se é blitz da polícia ou de bandido. Então eu pago um taxista por mês. Ele me leva pra um lugar e já combino com o taxista a hora de ele me apanhar. Acho que pagar assim sai mais barato do que ir na bandeira. Uma vez por mês, o taxista me leva pra Vassouras. Uma vez pedi pra ele fazer a viagem no taxímetro, e deu R$ 200. Eu pago a ele R$ 400 por mês. É melhor do que pegar um ônibus pirata para a Beija-flor, como o que peguei recentemente. Na volta do samba, às três da madrugada, o trocador vinha com com uma máscara de bate-bola, em pleno mês de maio. Devia ser algum bandido, pra ninguém reconhecer.

Nos velhos tempos, eu cheguei a vir de Belford Roxo de madrugada a pé. Conhece Nilópolis? Tem um clube lá chamado Nilopolitano. Também já vim a pé de lá. Do Vasquinho de Miguel Couto, de Morro Agudo, até de Cabuçu. Adorava acompanhar escolha de samba, ensaio de ala, essas coisas. Depois do carnaval, o negócio fica meio morto, tem um sonzinho aqui, outro ali, música ao vivo. Quando vinha junho, julho, era festa junina e julina e tinha festa agostina também. E quando vinha setembro, tinha o baile da primavera. Também ia muito no baile dos namorados do Esporte Clube Iguaçu. Quando a rapaziada saía de madrugada, ia ver a queima de fogos da festa de Santo Antônio, nosso padroeiro. Outro grande evento era a festa de Nossa Senhora da Conceição de Cabuçu, em dezembro. Em abril tinha a festa de São Jorge. Antigamente a gente andava mais pelas ruas. As pessoas não tinham medo da violência.

culturani: O senhor era um atleta?

Professor Ney: Eu jogava vôlei, basquete e futebol. Mas nunca fui atleta. Pra mim quem joga basquete não é um atleta. Atleta é quem faz atletismo. Atleta é aquele que tem o peitão de aço, como o de Hércules. Não é como esses corredores esqueléticos, que não aguentam nem uma ventania.

culturani: O senhor é casado?

Professor Ney: Pela oitava vez

culturani: Oito casamentos?

Professor Ney: Não, casamento eu tive dois. Foram seis amigações e dois casamentos.

culturani: O senhor tem filhos?

Professor Ney: Oito. Com a segunda mulher, eu não tive filhos. Mas adotamos um cachorro pequinês.

culturani: Quem dá mais trabalho: a mulher ou o cachorro?

Professor Ney: Todos dão trabalho.

culturani: É verdade que uma vez o senhor saiu pra comprar um frango assado pra sua esposa e só voltou uma semana depois?

Professor Ney: Não, eu voltei quatro meses depois. Eu estava casado com minha segunda mulher, a do cachorro pequinês. Ela estava grávida e estava com um desejo de comer um milho cozido e um frango de padaria. Saí de casa de bermuda e camiseta, com um sapato canoa, desses de amarrar. Passei na Caixa Econômica, que na época empenhava joias. Empenhei meu cordão de ouro, meu anel de professor e um medalhão. Botei o dinheiro dentro do bolso e peguei um jipe no colégio Leopoldo, que é de minha família. Passamos o natal, o ano novo, o carnaval, só voltamos depois da semana santa. Quando eu voltei, eu disse para meu amigo: "Tenho que comprar o milho verde e o frango assado da minha mulher." Ela achou que eu tivesse sido preso. Sempre que demorava nas minhas farras, eu dizia que tinha sido preso.

 
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1 Comentários:

esteblogminharua disse...

Essa entrevista faz tempo, mas só hj tive a satisfação de lê-la. É, e sempre foi, uma aula de história conversar com meu amigo Ney. Ainda mais para a gente, que o acompanhou nalgumas peripécias. Parabéns pelo trabalho e muitíssimo obrigado pelos momentos de boas recordações, saudosismo puro e humor que essa materia me proporcionou. Franz Pereira.

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