Mochila dos franceses - uma crônica-narrativa-poética-triste nada alegre

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

por Yasmin Thayná



Acordei cedo. Tomei uma caneca de Nescau. Dei um beijo na testa de minha avó e disse "tchau," ela me disse: "vá com Deus. Vai dar tudo certo, minha filha." Não vi o pai. Coloquei a mochila nas costas. Peguei um ônibus cheio. Subi a passarela da Estação Ferroviária e avistei o centro cultural: estava atrasada uma hora. Andei depressa. Sentei-me na poltrona com o coração acelerado: hoje são vinte, o dia que a casa cai.


Bela discussão. Talvez todos estejamos equivocados e sejamos imbecis de estar discutindo algo que nos pertence e só nós podemos ser justos com nós mesmos, já que o mundo é cruel e dominado pelas elites.

Olhei o relógio e marcava 14:45: vou pegar meu resultado. Li "não apto" no último nome da lista: Yasmin Thayná de Miranda Neves a suja que estragou a linda relação limpa de aprovações. Sempre tem um fodão para estragar a relação.

Passei pelos meninos no pátio forte. Aliás, eu era a Yasmin Thayná: referência artística e pedagógica da FAETEC de Nova Iguaçu. O retrato da disciplina era eu. Manti um orgulho que não me pertencia e uma pessoa que nunca fui.

Chegando na Via-light, o sinal fechou. Uma lágrima escorreu pelas minhas gigantescas bochechas. Eu vi o Julio Ludemir dizendo no calçadão de Nova Iguaçu para mim que eu poderia não ter tanto talento, mas eu tinha compromisso. Só conseguia pensar nisso andando com a sensação ruim cravada em um rosto manchado e sem identidade que não era meu. As lágrimas que caíam provavam a minha incompetência em tornar o choro no sorriso.

Sentei na mesa de praça da Via-light. Coloquei minha mochila que pesava o dobro naquele momento. Chorei. Desabei sobre os filmes de Robert Bresson, Alain Resnais, Truffaut, Laurent Cantet, Stephen Frears e Godard que me acompanhavam. Senti a dor das cenas de "Hiroshima, meu amor" e a angústia daqueles meninos incompreendidos de Truffaut em busca da liberdade.

Levantei-me e andei. Peguei meu celular. Disquei "mainha" e disse: não fui aprovada. Ela me acariciou com um dos contatos afetivos humanos: a comunicação. Eu chorei. Cheguei em casa. Coloquei a mochila dos franceses no chão da varanda e caí feito um tijolo do vigésimo andar. Ali, começa a mudança de meu personagem. Aquele "não" soou feito um espelho que nunca vi antes. O espelho que mostrou o meu rosto e disse em primeira pessoa: eu sou feia e menor.

Não sou tão foda assim como o Julio me disse. Eu não sou tão diferente e melhor do que qualquer excluído do João Luiz diante da grandiosidade engenheira do mestrado, doutorado e todos os "ado" do engenheiro-professor Mauro Coelho: o professor que disse não a mim. Isso me fez lembrar dos dias em que conversávamos horas. Ele me parecia tão amigo. Mas Fernando Vieira usava a palavra - já dita por Augusto dos Anjos - em suas aulas: "a mão que afaga é a mesma que apedreja." Mesmo nas aulas dele, não havia compreendido os versos íntimos. Mas o profissionalismo é EXATIDÃO! Julio não pode me dar um abraço de final de ano porque ele está acima de mim e ele quem manda. Afinal, ele é o profissionalismo. (Nunca vou seguir esse pensamento ridículo e desumano!)

Isso é comprovado quando vi na outra lista do ensino médio escrito: aprovada. Logo em matemática, matéria que eu nunca atingi a média suficiente para ser apta. Mas Luiz Marcos sempre me ajudou nas minhas diversas dificuldades.

O Mauro me mostrou quem sou. Mostrou toda a beleza falsa voando exatamente naquele momento. Mauro me deu um espelho para que meu final de ano seja o fim longe do "feliz para sempre." Longe da Cinderela e de todos os contos de fada.

Eu não sou tão foda assim como o Wanderson Duke. O amigo que não liguei no dia de seu aniversário, mas sempre dei atenção quando me dizia que eu o faço sorrir nos momentos que ele chora. Nos momentos em que ele precisa de choro, eu dou o sorriso. E quando ele precisa de um sorriso, eu dou três gargalhadas.

A água do banho gelado que tomei, me fez ter a sensação da escravidão brasileira. Os pingos eram como chicotadas em meu corpo. E lá da varanda, pude ver três fios de alta tensão que tinham o marco da existência das pipas. Ainda há moleques no centro da cidade que se divertem com linha, varetas e papel de seda colorido. Havia três pedaços de rabiola preso nos fios de luz: um menor que o outro. Ali estava o meu personagem: o menor das rabiolas.

Lembrei ainda do meu estudo antropológico que fiz nas quintas desse ano na 52ª dentro de um pátio cujo ar é quase rarefeito. Veio na mente justamente o dia em que o Mike do "Sonho possível" que refletiu na entrada zombada de um homem negro, obeso e flamenguista que tinha sido preso naquele dia: "olha só quem chegou, o Mac Lanche feliz. Tá lá no filme. Na telona. Alá você, Mac. Acabou de dizer Mac," disse os presos. Eu me senti exatamente o Mac no momento em que ele foi empurrado para o seu lugar: lá trás que é o lugar mais longe, desconfortável, sujo e quente da cadeia. A única diferença entre eu e o Mac lanche feliz é que ele foi preso por ter sido ele mesmo e eu por não ser. E que apesar disso, tenho que cumprir com as minhas obrigações mesmo presa. Eu nunca fui tão foda assim.

Dia vinte de dezembro, o dia mais triste e realista de dois mil e dez. Feliz dezoito anos. Estou bem vinda a vida.
 
 
ao wanderson duke

7 Comentários:

Anônimo disse...

não entendi a necessidade desse texto.
helio

Nassor disse...

É a fraqueza que nos torna fortes, pelo menos é assim que enxergo , é identificando e apontando nossos própios erros que nos tornamos melhores.E pra não deixar passar batido , eu também não sou tão ''foda'' assim , melhor, nem um pouco.
Mas , me situei legal na sua situação através do texto , isso é bom , preciso melhorar nisso.
Bela cronica , abraço , depois passa lá no meu blog e dá uma olhada, vou postar em breve...

clebson disse...

nem sempre se escreve por necessidade, mas acho que nosso amigo Helio não entendeu assim,porém minha jovem e adorada escritora, cineasta... em fim, artista por natureza,sinto sua falta e de estar com vc vendo o mundo com os seus olhos que pra onde olham só veem cultura!
só voltando ao debate... a necessidade nem sempre é de quem escreve, pois esse já o sabe, na maioria das vezes é de quem lê.
muito obrigado por escrever!

Anônimo disse...

Creio que falte sensibilidade a uns,
ou apenas a máscara da dureza perdure. Você aqui foi a fodona de mostrar sua dor...
Força, que não lhe falte!

Um abraço.
Amoeba.

Julio Ludemir disse...

ainda bem que não há necessidade para este texto. os textos belos não têm necessidade alguma. o belo é o belo - seja no teatro, na música ou na literatura. parabéns, yasmin. este é um texto que só faz corroborar seu talento e seu compromisso com o projeto. feliz natal. beijos

Yasmim, só agora, quase uma semana depois, leio seu texto. Não há nada que eu, ou qualquer outro aqui, possa dizer para aliviar a dor que você sente agora. Mas posso lhe dizer uma coisa, todos os "fodas" do mundo passaram por situações como a que você vive agora. Ou então não seriam fodas. Quase sempre aquele que só vence é porque nunca se propôs um desafio de verdade. Michael Jordan, o melhor jogador de basquete da história, dizia que na maior do tempo ele erra, o que acontece é que seus acertos são muitos visíveis. Por fim, um clichê do clichê, de tão desgastado, mas, quer saber?, me ajudou quando precisei: "o que não nos mata nos fortalece". Força Yasmim, você tá viva no mundo e ele agora é todo seu! Ah, e seu texto me deu vontade de conversar sobre ele. Até 2011! Ecio Salles

IsaBele disse...

Eu, menina! Você não me conhece, mas já ouvi o Fernando Vieira falar super bem de você, e também já a vi no blog dele. O que posso lhe afirmar é que provas não provam nada, e que pelo que vejo, neste ano vc realizou coisas que escola nenhuma é capaz de dar. Eis aí sua sabedoria, sua busca pela arte, pela vida, pelas coisas que realmente valem a pena. Imagino que o momento deva ser difícil e triste, mas não há nessa vida dor que o tempo não cure.

Paz e sucesso em 2011! Você é grande!

Abçs!

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