A embriaguez do cinema

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

por Hosana Souza

O cinema é especialista em modificar personagens, criando novas e surpreendentes situações. Mas você conseguiria imaginar Diego Bion, do Cineclube Buraco do Getúlio, como enfermeiro? “Eu quase entrei nessa. Minha mãe, meu pai, meu avô, todos estão na área da saúde, eu até fiz o técnico por um tempo”, diz Bion, relembrando a adolescência. A troca do uniforme branco pelo papel, caneta e câmera digital foi apenas uma das mudanças ocorridas na sua vida.

O que era para ser apenas um curso que ocupasse as horas vagas terminou se tornando a razão de viver de Bion. “Uma vizinha nossa que era merendeira contou pra minha mãe que na escola que ela trabalhava teria uma oficina de cinema e minha mãe falou para ir e aproveitar”, conta ele, que partiu para o Bairro Botafogo atrás da oportunidade. “Eu fiquei na reserva, o curso era para vinte pessoas e eu era o vigésimo quinto, mas eu consegui. Depois terminei largando o curso de enfermagem e entrando na FAETEC para fazer Produção Audiovisual”, explica.

Bion, que antes tinha com o cinema apenas a relação de espectador, participou da primeira ESPOCC – Escola Popular de Comunicação – do Observatório de Favelas e desde então contabiliza seis curtas-metragens e um cineclube de sucesso. Seus primeiros curtas, “Noite Aberta” e “O Julgamento”, foram gravados simultaneamente e com material cedido pelo Observatório de Favelas.

Soluções audiovisuais
“Eu perdi um primo na Chacina da Baixada e dentro de mim havia um desejo grande de lidar com essa situação. Em todos os meus curtas eu trago essa realidade, o desejo de lidar com alguma coisa, de resolver algum problema por intermédio do audiovisual”, explica. “Eu gravei “O Julgamento” dos réus da chacina, um julgamento que durou três dias. E em uma dessas noites eu gravei o “Noite Aberta”, que fala sobre a relação da mídia, dos telejornais que assisti na madrugada com essa situação. No geral, eu falo um pouco sobre a relação dos meios de comunicação com a periferia”.

Bion continuou as produções, desta vez de forma independente, com os curtas “Sobre as raízes das laranjeiras” e “Dia dos Pais”. “Em “Sobre as raízes das laranjeiras”, eu tentei resolver uma cisma minha da relação diretor e ator. Esse é o filme, dos que eu produzi, que eu menos gosto, até mesmo por ser uma relação que eu não consegui resolver”, confessa.

“Dia dos Pais”, como o nome diz, é um dos feriados da vida de Diego Bion. Mostra ele a caminho da casa do pai, onde ao chegar não encontra ninguém. A relação conflituosa percebida no vídeo é uma realidade vivida por muitos jovens. “Minha relação com meu pai sempre foi tensa. Quando ele se separou da minha mãe, eu até tentei morar com ele um tempo, mas não deu certo. Até hoje ele solta que gostaria que eu continuasse na mesma área que ele, mas não tem nada a ver”, confessa.

Logo após veio “Espelho”, no qual mostra o outro lado da moeda da paternidade: ele como pai. “Eu nunca tive uma das melhores relações com crianças, principalmente com as pequenas, que me incomodavam muito. Mas quando descobri que estava grávido tudo mudou”, diz. “De repente eu passei a ver – ou notar – crianças por todos os lados, existiam varias crianças e bebês no mundo e eu só percebi isso no dia que descobri que seria pai”, brinca o pai do Ícaro.

O não-cinema
O sexto e ainda inconcluso curta de Diego Bion se chamará “Roteiro” e possui uma especial singularidade: ele é feito apenas com som. “É praticamente um não-cinema, quando observamos do ponto de vista clássico. É um filme que nasce de um média, já escrito por mim, e que eu nunca consegui realizar”, explica.

O curta, que se passa dentro de uma videolocadora, conta a história de Rafael, um menino que deseja fazer um filme e tenta convencer seus amigos que isso é possível mesmo sem material. “Ele é composto por algumas sinalizações que eu faço, por exemplo ‘Corta para mão de Rafael fazendo um barco de papel’. É feito com recortes do roteiro original escaneado, e por vozes e sons que compõem a cena e fazem o público imaginar e chegar exatamente onde a história caminha”.

O primeiro test-drive do curta-metragem foi feito, é claro, no Cineclube Buraco do Getúlio, quando tinha apenas um minuto e meio de duração. Meses depois foi reeditado para a “Mostra Angu à Francesa”, do Cineclube Matte com Angu, e agora já possui quase quatro minutos. “Eu vou terminá-lo logo e jogar no You Tube, aproveitar o burburinho”, diz. A ideia inovadora nasceu de um dos porres de Bion. “Tudo de melhor na minha vida eu decidi quando estava bêbado. Inclusive eu fiz um filho bêbado”.

Como a maioria dos artistas, Bion usa a bebida como um golpe criativo: “O fato é que quando você está bêbado não poda sua criatividade. Eu já tinha a ideia de fazer um curta nesse formato, mas eu sempre pensei ‘Putz! Não vai dar certo!’, e isso acontece em várias situações da vida. Agora, quando você está bêbado, você não pensa assim, você logo vê que vai dar certo e toma coragem de fazer – depois quando está sóbrio, é claro”.

Bar do Ananias
Dentre as melhores conquistas alcoólicas de Diego Bion, está o Cineclube Buraco do Getulio, que hoje conta com o apoio da ASCINE-RJ – Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro –, organiza sessões semanais e a tradicional sessão temática no primeiro sábado de cada mês. “A gente conta essa história e as pessoas pensam: ‘Ah! É balela, eles inventaram isso’. Não, gente, não é, a história é de verdade: o Buraco nasceu no meio de uma bebedeira”

O Buraco do Getúlio nasceu por causa da Jornada Cineclubista, cujos participantes não precisavam ter um cineclube. “Nessa época, ainda na ESPOCC, nós montamos o “Pão e Circo”, um cineclube que nunca teve uma sessão. A ideia era: 'vamos exibir trechos de programas e comerciais de TV e vamos convidar antropólogos, propor debates.' Nós estávamos naquela vibe ‘A Globo é uma merda’, depois a gente descobre que é tudo uma merda e se reacostuma”, conta.

Porém havia um adendo, apenas duas pessoas poderiam ir a Jornada Cineclubista, e na época o grupo do cineclube era formado por quatro pessoas, mais especificamente dois casais. “Então era isso, não ia rolar ir um e não o outro. As mulheres não iriam sozinhas pro Rio Grande do Sul e muito menos os homens sairiam para a curtição. O que a gente resolveu então: vamos inventar um cineclube. Nós estávamos em frente ao Ananias, bêbados, o Marcio já querendo nos expulsar, aquela cena clássica da madrugada e nós decidimos que faríamos um cineclube. Nós falamos: ‘Marcio deixa a gente fazer as projeções de uns filmes aê’ e ele deixou”, relembra.

A frase de Marcio provavelmente foi “Sim, sim, só paga a conta e mete o pé”, tanto que espantado não pode negar a presença do grupo de jovens ali na semana seguinte. De lá para cá, são quase cinco anos de Buraco do Getulio. “O cineclube inventado foi o que deu certo, foi o que ficou. Por isso eu falo: minha gente, beber faz bem, não faz mal”, encerra entre risos.

1 Comentários:

Lucas Lima! disse...

Até que enfim saiu a matéria, rs

É bom conhecer histórias novas, já saber de outras por eles mesmos e até estar acompanhando algumas de perto.

So um obs. Faltou o Crítica do ultimo C de ESPOCC, rs

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