Sem deixar que o clima atrapalhe, jovens lotam teatro para assistir peça baseada em Nelson Rodrigues
Ás 19 horas de sexta-feira, 24 de setembro, a movimentação no interior do SESC já era intensa. O local, que em muitos eventos já fora descriminado pelo difícil acesso, estava novamente quebrando uma regra no segundo dia do Encontrarte – o Encontro de Artes Cênicas da Baixada Fluminense.
Citado pelo ator Marcelo Borghi na abertura do evento, o conceito já formado, de que em Nova Iguaçu não há publico, está sendo pisoteado pela multidão que tem lotado o teatro, enfrentando o frio. “Acho que o público já se acostumou com o Encontrarte, então eles vem com chuva ou sol”, avalia Tiago Costa, um dos cinco idealizadores do evento.
Na frente das duas portas de entrada para o espaço do teatro as filas já estavam formadas. Com os ingressos amarelos em mãos – que são distribuídos na entrada, antes do espetáculo – um trio de amigos já havia garantido os primeiros lugares da fila. Rodrigo da Silva, André Luís Almeida e Vanessa Ramos chegaram às 7 horas e 15 minutos e não viam a hora das portas serem abertas. “Eu imagino que a peça tenha um pouco da realidade de hoje, com direito a falsidade e intriga”, diz Rodrigo, que estuda administração teatral na EAT – Escola de Artes Técnicas, em Nova Iguaçu. O rapaz, logo que soube da programação do evento, convidou os amigos. Rodrigo e André compareceram à abertura, na noite de quarta-feira, deixando Vanessa “revoltada” ao contarem sobre as maravilhas vistas sobre o palco. “Ela está assim porque não pôde vir”, diverte-se contando. André, por sua vez, demonstrava grande expectativa para “Homem nenhum”, que em breve seria iniciado: “Como na programação uma peça parece ser melhor do que a outra, a gente sempre espera mais do que vimos no dia anterior”, conta ele, lembrando de “Inveja dos anjos”, apresentado pelo “Armazém Companhia de Teatro”.
Na porta do lado direito, Silvania Lessa, que também ocupava um dos primeiros lugares da fila, não pôde deixar de comentar: “Só pela peça ser baseada na obra de Nelson Rodrigues já deve ser maravilhosa”. O organizador Tiago Costa ainda complementa. “O espetáculo de hoje é bem denso. É um grande exemplo do que é fazer teatro”. Para alegria dos realizadores, que se mantém em constante agitação por conta das montagens diárias, e surpresa do público, “Homem nenhum” não faria uso de cenário, baseando-se no talento de interpretação e na fé cênica de seus atores. “Eles fazem uso de figurinos muito simples e um adereço de cena que revela a história inteira”, adianta Tiago.
Meia hora antes do horário previsto para abertura das portas, um doce canto passou a preencher o hall de entrada: eram as meninas da “Cia. do Sol”, trazendo a performance “Mamãe Iemanjá”. Com uma narradora e uma intérprete da rainha das águas salgadas, a dupla fez uma apresentação lúdica, repleta de musicalidade. “Elas são atrizes que já moraram na baixada, estão agora no Rio de Janeiro”, revela Éverton Mesquita, um dos idealizadores do Encontrarte, cuja marca registrada é o constante sorriso estampado no rosto. Ele explica que a apresentação trata-se de uma fração de um espetáculo produzido pela companhia. “Não são só elas duas, o elenco é maior. Mas como as performances não podiam ter mais de 2 pessoas, elas pegaram uma parte para apresentar pra gente”, explica.
Apesar do período curto, cerca de 15 minutos de apresentação, a cena mostrou, com clareza, um início, um meio e um fim. “Elas revelam como é Iemanjá, a beleza dela, o sofrimento, como o marido a tratava”, pontua Éverton, continuando: “Não adianta você apresentar uma performance que deixe o público confuso”.
As atrizes demarcaram o espaço com areia, pétalas, e pedrinhas azuis, trazendo um recorte que remetesse a praia para o interior do SESC. “ Fica claro que essa performance passa-se na beira do mar”, avalia o produtor.
Assim como as peças, as cenas que as precedem também passaram por avaliação. Houve um grande cuidado quanto à classificação das mesmas, para que pudesse ser feita a divisão de quais seriam apresentadas pela manhã ou pela noite. A diferença é que as performances foram todas apresentadas ao vivo e não em vídeo. “Foram apresentadas mais de 50 performances. Foi no Sylvio Monteiro, precisamos ficar lá das 18h às 2 da manhã”, revele Éverton. Na ocasião, estavam presentes os cinco produtores do Encontrarte. O próprio Éverton Mesquita, Fábio Mateus, Mário Marcelo, Tiago Costa, Claudina Oliveira e Ribamar Ribeiro, que orientará a oficina “O teatro e seu valor artístico na estrutura da pesquisa de linguagem”, nos dias 29 e 30 de setembro e 01 de outubro. “Todas essas performances que o público está vendo e vão ver, nós já escolhemos antes lá”, conclui o homem do sorriso.
Com o término de “Mamãe Iemanjá” as portas foram abertas. Em instantes os assentos do teatro já estavam todos ocupados. Fez-se o sinal que a peça estava para começar. Na primeira fileira, Laísa Cardoso soube que o texto de “Homem nenhum” foi baseado na obra de Nelson Rodrigues. A jovem, que há poucos meses apresentou, em sua formatura de teatro avançado, uma peça do mesmo gênero, se emocionou com a informação. “Muita emoção, muito anjo pornográfico”, exclama Laísa, utilizando o termo “rodriguiano”. “É a primeira vez que venho ao Encontrarte. Espero que seja um bom espetáculo. Desejo muita “merda” para quem estiver participando”, declara, empolgada.
O espetáculo inicia com todo o elenco em cena: Ivan de Oliveira, Lucimar Sena, Rose Cardoso, Simone Leal, Tatiana Oliveiraz e Valério Bandeira, numa demonstração de tamanho sincronismo. Cotinha, a narradora, ganha em seguida a atenção total do público, quando lança as palavras: “Em nossa família, todas as mulheres que amaram foram desgraçadas. Por isso, nunca amei homem nenhum... homem nenhum”. Inicia-se então toda a saga da narrativa, repleta de traições e polêmicas. O público reagia com fervor às cenas típicas do universo de Nelson Rodrigues, que recebeu um tratamento especial de Ivan de Oliveira. Também atuando na peça, o autor arrancou muitas risadas e assombros dos espectadores.
A minuciosa iluminação ficou por conta de Pablo Rodrigues, complementada pela trilha sonora de Fabio Terranova. “Homem nenhum”, dirigido por Josué Soares possui ainda profissionais de figurino, maquiagem e cenografia, dentre outros. “É fabuloso, é uma equipe maravilhosa”, diz Ivan de Oliveira, apaixonadamente. Foi dele a proposta de vivenciar a obra do polemico autor nos palcos, que logo foi abraçada pelo grupo.
Aplaudidos de pé, o grupo exibia sorrisos de satisfação e uma sensação de dever cumprido.
“A apresentação foi ótima. O público foi maravilhoso participando”, afirma Ivan, que aproveitou o momento para felicitar: “Eu quero parabenizar Nova Iguaçu por essa iniciativa de convidar os grupos de outras regiões para estarem se apresentando aqui”, diz em nome da Luminous, vinda de São Gonçalo. Ainda no palco, o elenco recebeu uma placa de homenagem da produção do Encontrarte.
0 Comentários:
Postar um comentário