Aleija, mas não mata

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

por Vinícius Tomás

Muito tem se falado sobre a tecnologia 3D no cinema. Avatar, o gigantesco sucesso de bilheteria, tinha como principal atrativo uma nova experiência na sala de exibição através do revolucionário 3d estereoscópico. Profundidade, distância, posição e tamanho dos objetos eram perceptíveis na tela, perdendo o efeito “chapado” que a tela comum dá à imagem e criando uma impressão de imersão no filme. A sensação é de que a ação se desenrola na frente do espectador. O 3d não é uma tecnologia nova , apenas foi levado a um novo patamar em Avatar, com extrema fluidez e riqueza de detalhes. Nem são novas as tentativas de se criar diferentes experiências em cinema.

Fui convidado a escrever uma crítica do filme 400 contra 1 – Uma Historia do Crime Organizado, filme que conta o início do que hoje se conhece como Comando Vermelho. E a oportunidade para assisti-lo surgiu. Era uma sessão de cinema inusitada. A sala de exibição era a carceragem da Polinter, em Nova Iguaçu. O público era formado por cerca de 200 presos “filiados” ao Comando Vermelho. Eu estava embarcando na mais intensa experiência em cinema que eu poderia ter.



Juntei-me ao grupo que foi ver o filme com os detentos para uma reunião com o coordenador das carceragens da Polícia Civil, delegado Orlando Zacconi, Écio Salles, secretário de cultura de Nova Iguaçu e Julio Ludemir, colaborador do roteiro do filme, secretário adjunto de cultura e coordenador do CulturaNI, que apresentaria o filme aos presos. Em pauta estavam projetos culturais direcionados para a população carcerária, como o Cineclube Carceragem, evento do qual participaria. Ao fim fomos levados à carceragem.

O portão abre fazendo barulho e fecha atrás de nós para outro abrir a seguir. Entramos na cela, e o que vi era diferente do que eu esperava. O ambiente é limpo, na medida do possível para um lugar aonde vivem quase 200 homens. Redes penduradas em diferentes níveis até próximo das grades do teto. Quase todos os presos usavam a mesma roupa, bermuda jeans e camiseta branca, e ouviam em silêncio o que o delegado Zacconi dizia. Julio Ludemir fez uma breve introdução do filme aos presos e todos sentaram no chão para assistir.

Cabe aqui um adendo. Como crítico, sinto que é insuficiente uma análise do filme apenas, mas sim de toda a experiência. Como criticar um filme em 3d implica falar sobre seus efeitos, cabe a mim falar sobre a interação com o cenário e com os detentos.

Trilha sonora compatível
O filme começa bem, uma cena do assalto a banco com um letreiro avisando o ano de 1980, e os créditos iniciais ao som de Funk Brother Soul, de Gerson King Combo. Aliás, a trilha sonora assinada por Max de Castro é impecável, com faixas de funk e souls nacionais, música de qualidade e compatível com a época que se passa o filme. Logo após os créditos corta para 1971, a chegada de William “Professor”, interpretado por Daniel de Oliveira, ao presídio de Ilha Grande. Começam as cenas no presídio que, devido à montagem, acompanham o público até o final do filme.

Aliás a montagem conduzida por Marcio Canella se tornou um ponto de polêmica no filme. A historia é linear, Willian “Professor” é preso e após uma temporada de torturas no DOI-CODI vai parar no presídio da Ilha Grande, aonde, inspirado nos presos políticos, se mobiliza para lutar pelos direitos dos presos, criar um código de conduta e desenvolver condições para a fuga. No caminho fica um rastro de violência que culmina nas ações do grupo nas ruas em ousados assaltos a bancos e no evento que dá nome ao filme. Cavanha, interpretado por Fabrício Oliveira, enfrenta sozinho um cerco de mais de 400 policiais por mais de 12 horas. A história tem começo, meio e fim definidos, mas é contada através de elipses temporais. Isso torna o filme confuso e prejudica o desenvolvimento dos personagens, fica mais difícil enxergar como eles mudam nos quase 10 anos de história. E tira parte do impacto do final. Mas não torna a história incompreensível. No bate papo após o filme, os presos que conversaram com Julio disseram ter entendido o filme, assim como os que falaram comigo. Pelo menos a montagem funcionou para o evento que foi ver o filme na cadeia, mantendo cenas no presídio até o final. Usando uma frase que ouvi na cela, a montagem “aleija mas não mata”.

O ambiente de carceragem no filme estava não apenas na tela, mas a minha volta. O contato da mão com o chão de cimento duro e sem tratamento, o ar viciado e quente de um ambiente sem janelas, os barulhos da cela e olhar em volta e ver uma centena de detentos. Não é como ver a ação se desenrolar a sua frente, é como estar assistindo de dentro do filme, uma interação sensorial, que mexe com os sentidos. Na comédia de John Waters, Polyester, de 1981, usava-se o Odorama, um cartão para ser raspado pelo público com cheiros ligados a cenas do filme. Foi o pioneiro do cinema sensorial. E era cinema sensorial a experiência pela qual eu passava, mas com muito mais realismo e intensidade que as sensações proporcionadas por um cartão com cheirinhos.

Em uma cena aparece o Cristo Redentor e o detento sentado ao meu lado suspira: “olha ele lá”. Em outra, um churrasco causa comentários e cochichos generalizados. Saudade da vida fora da cela. Com uns 20 minutos passados de filme um preso avisa para a cela: “Vai cantar a liberdade”. Logo um dos detentos, apelidado de “Da Mina”, vai a frente do público e pede a atenção dos presentes gritando: “Atenção facção criminosa Comando Vermelho Rogério Lemgruber. Coletivo na escuta?” e é respondido com um grito em uníssono de toda carceragem: “Na escuta!”. Começa aí uma cerimônia marcante. Três presos ganharam a liberdade e a carceragem canta para comemorar. O nome do liberto e o artigo do crime pelo qual foi preso são ditos em voz alta e é cantada a liberdade, uma vez para cada preso, uma canção diferente para cada crime. Um misto de musica litúrgica, grito de guerra militar e hino de torcida. Da Mina puxa o canto e é respondido nos refrões por todos os presos, como um salmo responsorial em uma missa católica. Naquele momento eu não estava apenas assistindo 400 contra 1 de dentro da cela, eu estava participando de um rito do Comando Vermelho, que nem Julio Ludemir, perito na historia das facções, conhecia. Isso sim é algo inédito, uma interação direta com o assunto abordado na película. Não é apenas assistir de dentro, e a sensação de fazer parte do que está acontecendo. Passada a euforia dos presos sentamos de novo para terminar o filme. E recomeçou com uma das várias cenas de fuga. O público vibrou.

Apologia
Falar sobre os ritos do C.V. não é apologia, que fique claro. Essa é outra polêmica em torno de 400 contra 1. Li duras críticas ao filme acusando-o de glamourização do crime e apologia ao Comando Vermelho. E não concordo com elas. O filme se propõe a mostrar o início da Falange Vermelha, embrião do Comando Vermelho. É isso o que ele faz, sem se restringir. Criticam policiais torturadores do Tropa de Elite, que viraram ícones pop. o público acaba simpatizando com os protagonistas do filme, é natural. Não apenas os detentos, que torciam avidamente pelos personagens e se decepcionaram com o insucesso de suas ações no final, mas qualquer um que veja o filme. O roteiro sempre oferece um alívio cômico às cenas mais violentas, o que cria simpatia pelos bandidos. A cena em que Baiano, interpretado por Jonathan Azevedo, faz um desabafo contra o Manual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Marighella é hilária.

Os detentos comentavam várias cenas. Em uma delas, William está na solitária com um rato e eu ouço: ”Sempre tem um rato”. Em outra, os presos dividiam um cigarro e o detento do meu lado disse: “Igual aqui, cada um da um traguinho”. O público se animava com as cenas de ação e tiroteio. E chiavam nas cenas em que o grupo do “Fundão” sofria um revés. Sinal de que estavam gostando do filme.

As cenas de ação são exageradas, um pouco acima do ponto, mas de acordo com a levada mais pop de Caco Souza na direção. A cena da perseguição dos fuscas é digna de Tarantino, no que isso tem de bom e ruim. E comparando com outro diretor famoso os painéis do filme e os créditos iniciais remetem a Guy Ritchie. A fotografia dirigida por Rodolfo Sánchez é criativa, com uma estética dos anos 70 que ajuda a ambientação e cortes rápidos que imprimem velocidade ao filme.

Do elenco principal é Daniela Escobar quem se destaca, irreconhecível loira e interpretando, com méritos, uma personagem diferente das que faz em novelas. Teresa trai seu marido carcereiro com William e demonstra ter vocação para o crime, principalmente o assassinato. Lembrando que Teresa também é o nome dado pelos presos para as cordas improvisadas para fuga. No tom certo esta também Branca Messina, como a advogada Carmem. Daniel de Oliveira está quase impecável. Falhou no sotaque “carioca” que lembra atores de pornochanchada dos anos 70. Há personagens que mereciam ter maior profundidade, como o Cavanha e o Pastor Maranhão, interpretado por Lui Mendes.

Faltou cuidado na montagem e direção em algumas cenas dispensáveis, com pequenos (mas perceptíveis) erros que entraram na edição final. Em uma um trem com pintura moderna aparece, um detento sentado próximo reconhece o trem e pergunta: “nessa época tinha Japeri dessa cor?”. Em outra, no ataque do “fundão” aos “jacarés” há uma falha grosseira nos efeitos. Um corte 2 segundos antes resolveria o problema. Os letreiros com os anos são dispensáveis. Seria mais interessante marcar como dentro e fora da cadeia apenas.

Funciona
400 contra 1 pode ter muitos problemas, mas funciona. Prova disso é que o público presente naquela sexta adorou o filme. E para quem vai vê-lo, deixe o moralismo em casa. A história não mostra as ações do Comando Vermelho no presente. Mostra apenas o seu início com os assaltantes de banco, antes de Rogério Lemgruber e dos outros traficantes. Violento sim, e tem seus problemas, mas ainda é um entretenimento válido, e uma tentativa de fazer algo diferente, mesmo que seja através do clichê do filme nacional sobre crime e violência. Vai agradar aos fãs do gênero. Me agradou, mas admito que posso não ter tido uma visão 100% racional sobre o que vi. Eu estava com outros 200 integrantes do C.V., após o impressionante hino da liberdade, dentro da carceragem deles. Não sei ao certo o quanto isso influenciou meu julgamento. Saí de lá após mais uma canção de liberdade e alguns minutos conversando com alguns dos detentos.

Não tenho dúvidas de que é inesquecível o que eu vivenciei na carceragem. Não só para mim. Tenho certeza que é marcante para Julio Ludemir, Nany Rabelo, Yasmim Thayná e Juliana Portella, que me acompanharam. Foi diferente de tudo o que eu já tinha visto ou participado. Entrar na cela e ouvir o portão bater, sentar ao lado de quase 200 homens, boa parte jovem, de idade próxima à minha, que fizeram uma (ou várias) curvas erradas na vida. A euforia dos presos libertos e a comemoração dos que ficam. Em cinema foi a imersão definitiva em um filme, o cinema sensorial de verdade, algo que mexe com os sentidos. E uma interação, não com o filme, mas com o seu “personagem principal”, o Comando Vermelho. E tudo isso sem precisar óculos 3D.

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