Caçadores de perereca

sexta-feira, 4 de março de 2011

por Dandara Guerra

Em um baú escondido, guardava lembranças, sem as quais jamais poderei viver porque fui fruto deste passado. Vejo pessoas de vários jeitos, vestidas de várias formas. Parecem cantar algo, ou representar sonhos. Não sei, pois são apenas fotografias, não emitem sons. “Pai, quem são essas pessoas e onde é esse lugar?”, perguntei ao músico Daniel Guerra, hoje mais conhecido e reconhecido como o vocalista da banda de forró Pimenta do Reino, mas que se tornou uma das pessoas mais populares da Baixada quando abriu o Daniel's Bar na Praça Santos Dumont 85, no Centro de Nova Iguaçu.

Tive a sensação de que o coração daquele homem de quase dois metros de altura começou a bater mais rápido, com uma mistura de angústia e saudade de um tempo que não volta mais. “Filha, esse lugar era o Daniel’s Bar, que pertencia a mim e a sua mãe. Essas pessoas são os amigos do seu pai”, conta ele. O que tinha naquele bar para deixá-lo tão emocionado e permanecer tão vivo na memória das pessoas que o  frequentaram na década de 1990? "Esse bar movimentava a cultura da Baixada naquela época", acrescentou ele com sua voz sempre calma, seus gestos largos.


Tudo começou por causa do seu cansaço de tocar nos bares dos outros, e do desejo de ter seu próprio espaço. "Queria muito ter um espaço que pudesse abrir as portas para a galera que fazia cultura na cidade", conta o músico, para quem o Daniel's Bar estava à altura de toda a efervescência que o país viveu na época, cujo marco inicial foi a primeira eleição direta para presidente desde o golpe de estado de 1964. "Nosso papel ia muito além de vender cerveja e ter música ao vivo".

Somente naquelas eleições passaram pelo bar o então candidato Luis Inácio Lula da Silva, que doze anos depois se tornaria o presidente mais popular da história do país, Leonel de Moura Brizola e Roberto Freire. "Depois disso, fizemos grandes encontros políticos no bar, como debates entre prefeitáveis, discussões e fóruns sobre políticas públicas". Em um desses fóruns, o produtor cultural Luis Carlos Prestes Filho chegou com o ator Grande Otelo para discutir cinema e política cultural. "Foi mágico”, diz meu pai, com um olhar saudosista.

Extensão de casa
O bar era uma extensão da casa de toda uma geração de músicos, poetas, dançarinos, atores, jornalistas e políticos da Baixada. "Eles estão aí até hoje, muitos desenvolvendo seu trabalho no mercado da região”, afirma Daniel. Não foi à toa que Dudu Carwal, músico que começou a ganhar a vida no apertado palco do bar, me disse que o bar foi um lugar especial. “Quem viveu na Baixada na década de 1990 tinha consciência de que estava vivendo um momento bastante diferente”.

Os artistas da Baixada iam para o Daniel's Bar por causa do cardápio cultural oferecido pela casa, que não tinha nada a dever aos melhores bares da Lapa. "Abrimos espaço para festivais de música popular brasileira e de esquetes de teatro, lançamentos de livros e recitais, além de exposições de artes plásticas", enumera. A pluralidade da programação atraía gente de todas as idades em busca de algo novo, alternativo, de um show de qualidade, de um bate-papo cabeça, gente que queria escutar um bom som. "E lá se escutavam os clássicos da MPB cantados pelas vozes afinadas de Daniel Guerra, Caeh e Liza , Trio Hora H, Márcio Aquino e Malena, entre outros."

O cardápio propriamente dito era recheado de pizzas e salgados vendidos a um preço tentador, mas em compensação os banheiros deixavam tanto a desejar quanto o atendimento dos garçons, que não sabiam se atendiam os clientes ou iam se apresentar no palco. Que o diga o garçom Ronaldo Paz, mais conhecido como Naldo, que não podia ouvir a introdução da música Cebola Cortada, de autoria de Raimundo Fagner. "Eu largava tudo e corria para o palco", lembra. Muitos clientes reclamavam do atendimento precário, mas os garçons se tornaram tão populares que as noites de terça-feira passaram a ser dedicadas ao espetáculo Os Garçons Selvagens, cujas estrelas apresentavam um repertório para lá de animado vestidos em sumárias tangas pretas. “Neste dia, os garçons eram os artistas e os patrões pegavam duro no batente”, lembra Ronaldo, também famoso por causa da touca, na qual guardava os poemas posteriormente publicados no fanzine do Desmaio Público.

Desmaio público
Embora o forte da programação fosse a música, o bar de meu pai viu nascer uma das experiências poéticas mais marcantes da história da Baixada Fluminense: o Desmaio Público. "Minha primeira apresentação com o Desmaio Público foi no Daniel´s Bar, no dia 19 de novembro de 1995", recorda a Ivone Landim, que naquela noite estava acompanhada de Lilian Tabosa, Otacilio Ferreira, Lobo, Sil, José, Junior, Moduan Matus, Edu Pestana, Eloy, Beto Elementro Demetris, Dejair Esteves, Marcus, Naldo Calazans (Preguinho), Ana Cajueiro, Heitor Nequinho, Luiz Cantalice e o próprio Daniel Guerra. "Neste dia não participou César Ray, mas não podemos esquecer de sua importância para o Desmaio Público", acrescenta ela, que define o Daniel’s Bar como o endereço certo para quem queria estar em dia com a produção e artística da área.

O bar promovia eventos para manter a fidelidade da clientela. Foram tantos eventos que meus pais resolveram criar a Guerra Produções Artísticos. Um dos projetos criados pela dupla foi o Encanto de Bar, que uma vez por mês abria espaço para os novos compositores da região. Já o Baixou Baixada Reggae visava a difusão da cultura negra da região, principalmente o então efervescente reggae. “Lá se apresentaram as bandas KMD5, Negril, Belford e a Lumiar, hoje Cidade Negra. Artistas como Seu Jorge, Lauro (Rappa) Bino, Lazão e Da Gama do Cidade Negra estavam sempre presentes”, lembra Dida Nascimento, que tocou na KMD 5 e Negril.

Além de produzir três edições do Fest Bar, duas edições de um festival de esquetes e uma mostra de dança contemporânea,  a Guerra Produções Artísticas trouxe artistas de peso, como Flavio Venturini, Sergio Sampaio, Claudio Nucci e Claudio Zolli. A produtora também apostava em experimentações multimídia, como o show Chamado Andarilho, que combinava dança com exposições de fotografia e quadros incorporadas à música de Daniel Guerra. Uma das produções da história do espaço, Caleidocóspio, reuniu nada menos de 60 artistas no palco do Daniel's Bar em uma noite de julho de 1990 para um público de mais de 500 pessoas. "O Cizinho fez  uma ópera pop espetacular, que poderia ser exibida, tanto por razões comerciais quanto por razões artísticas, no Daniel's Bar", lembra o poeta Moduan Matus, assistente de direção do espetáculo, que estreou em 1990 depois de um ano de ensaios.

Outra atração que marcou época foi o  Karaokê Showcante, no qual Robson Luy abriu um espaço para que os cantores de chuveiro mostrassem na prática que no "peito dos desafinados também bate um coração”, como no hino bossanovista. “As principais atrações eram os desafinados, desengonçados e envergonhados que nunca subiram no palco e que encontraram na novidade a grande chance de suas vidas", lembra o criador do antológico Silvo Silvestre. O primeiro colocado ganhava uma bolsa de estudo na Academia Música Sol Maior.

Cizinho
Uma das noites mais marcantes do seu Showcante foi a disputada por Budu Sidney e as Daniéticas, um surpreendente grupo de oito mulheres que conquistaram o coração da plateia com a interpretação de "Bonita e gostosa", das Frenéticas. Como o prêmio era somente para uma pessoa , elas abriram mão, deixando-o para o segundo colocado. Desse modo, a bolsa de estudos foi para Budu Sidney. "Nossa, como aquele homem chorava e vibrava ao mesmo tempo. Me recordo como se fosse hoje daquela cena”, conta Robson.

Depois das descobertas que fiz, liguei para minha mãe para saber quais foram os melhores momentos que havia vivido no bar do seu então marido. “Pessoas incríveis passaram pelo espaço, deixando sua marca. Cada dia era algo novo, tinha uma energia mágica que a gente conseguia trabalhar e se divertir. Os funcionários não eram máquinas de prestar serviço e sim pessoas com um potencial magnífico que se transformaram depois em atores, músicos, diretores de eventos, professores, cantores, etc." Para minha mãe, no entanto, o grande símbolo do Daniel's Bar foi Ileci Ramos Filho, mais conhecido como Cizinho, já falecido. "Com uma experiência teatral e uma bagagem espetacular, ele trouxe maravilhas na vida de muitos", conta Yara Gomes, para quem foi graças à experiência dele que o bar amadureceu esteticamente."As pessoas naquela época não queriam apenas beber e comer, desejavam mais: diversão e arte.Lá era o local certo do encontro.”

O poeta Moduan Matus acompanhou o Daniel's Bar desde a época em que funcionava atrás da prefeitura, ainda com o nome de Cálice. "Daniel teve que procurar outro lugar porque a clientela estava crescendo muito, não comportava mais", lembra o poeta, que bateu ponto no bar da Santos Dumont até o dono do terreno interromper o contrato do bar de meus pais, cinco anos depois. O fechamento do bar foi uma comoção registrada no poema “Adeus ao berço do Samba ou o Fim da última quimera”, publicado no fanzine do Desmaio Público.

“Chorar além de lamentar, ajuda a lubrificar os olhos, abram alas pros nossos olhos lacrimosos, choremos. Choremos: Chega ao fim o último remanso boêmio desta cidade devastada, a última quimera, estamos dando adeus às bombas. Chorai, caçadores de perereca, chorai, anuncia-se o fim do velho DANIEL’S BAR. Chorai, músicos em começo de “carreira”, chorai, abas e equilibristas, chorai, malas e aprendizes de ciganos, chorai astrólogos de balcão, chorai filósofos de orelhada, chorai, fotógrafos e cineastas de marquises, chorai espetos de um modo geral. Anuncia-se o fim, final do nosso eterno DANIEL’S BAR.”

3 Comentários:

Anônimo disse...

Parabens pela matéria ... que saudade. Salve a cultura da Baixada. Salve o Daniel's Bar.

Parabens Dandara , parabens Daniel Guerra e Yara ...

Ademilde Lima
Nova Iguaçu.

Não sei o sobrenome do Daniel é Guerra mesmo, porém se fez um antônimo com o sobrenome do Ronaldo que no sobrenome é Paz.Ronaldo é amigo dele há anos e trabalhou como garçom no bar dele? Agora uma pergunta: o bar do Daniel ficava onde funcionou também o Raízes.Quem souber pode colocar a resposta

Anônimo disse...

O sobrenome do Daniel é guerra e do Ronaldo é Paz, Ronaldo é amigo dele, sim há anos e trabalhava com ele no bar como garçom, sim , O bar não ficava onde é o enraizados, era perto do parque de diversões, na praça Santos Dumont, a famosa praça dos namorados... aquela em Nova Iguaçu que tem o parque, certo qualquer coisa pode pergunta...
beijos.

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