por Saulo Martins
"É só um ensaio", disse o Sr. Chow para a Sr.a Chan enquanto ela chorava debruçada em seu ombro com uma trilha sonora com uma música latina de fundo: esse é um dos momentos mais marcantes de Amor à flor da pele (2000), do diretor Wong Kar-Wai. Com uma atmosfera intimista de cores e palavras significativas e com atuações invejáveis, o filme conquista o espectador sem nenhuma cena de beijo, apesar de discursar sobre o amor.
O cinema oriental sofre preconceito de nós ocidentais, isso é notório. Eu mesmo, assumo, relutei muito antes de assistir esta obra. As poucas cópias asiáticas que chegam a nós nos passam as atuações caricatas e a frieza de um povo que parece mecânico. Nunca poderia imaginar que um filme feito na China pudesse criar um ambiente tão propício para o amor como Amor à flor da pele fez.
O roteiro conta a história de dois casais vizinhos: Os Chan e os Chow (o que pode causar muita confusão no início). A Sr. Chan é uma secretária e seu marido é um homem que viaja muito para o Japão. O Sr. Chow é um jornalista e a sua esposa é uma mulher que sempre faz hora extra e quase nunca encontra o marido acordado. A escolha de Wong Kar-Wai de não mostrar o rosto do Sr. Chan e da Sra. Chow é de prima importância para que o espectador se sinta distante deles assim como os seus cônjuges se sentem. A secretária e o jornalista se aproximam como busca pelo conforto da solidão, e acabam achando um no outro um lugar pra chorar quando descobrem que a Sra. Chow e o Sr. Chan estão vivendo um romance.
Os espectadores ocidentais esperam pelo clímax do roteiro, pela ação, pelas possíveis brigas que os casais poderiam enfrentar. Mas não. Não há batalhas, pelo menos não batalhas físicas. O sentimento de confusão que habita dentro dos personagens traídos é o clímax: esse é o ponto alto do roteiro que, talvez, não seja o suficiente para todos os públicos.
A narrativa que o filme propõe é muito contemporânea, mostrando as possibilidades e expondo uma sensualidade muito peculiar. O filme expõe situações hipotéticas e cria um clima que é essencial para o entendimento do roteiro: sem essa ambientação o filme poderia soar vazio e sem objetivo, como um discurso sem sentimento nenhum.
A direção é impecável em alguns pontos. Como por exemplo, na escolha das locações. Há uma rua onde as conversas do casal sempre acontecem, as conversas mais importantes e significativas. Uma rua deserta, cercada por grades. A escolha do posicionamento da câmera, mostrando o casal sozinho na rua, e as grades em primeiro plano, me permite à interpretação de que eles dois também se amam, também foram vitimas do sentimento culposo do amor proibido e que o relacionamento deles é trancado dentro deles. Outra locação que tem um alto valor significativo é o corredor do quarto para onde o Sr. Chow se muda: de um lado grandes cortinas vermelhas esvoaçantes, e do outro algumas portas e uma parede cinza. Quando a Sra. Chan vai visitá-lo e fica parada no corredor antes de bater à porta temos a impressão de que ela está escolhendo o amor (as cortinas) ou a realidade (a parede cinza).
Outro ponto alto é a troca de presentes: A Sra. Chow compra a mesma gravata para o próprio marido e para o amante. O Sr. Chan compra a mesma bolsa japonesa para a própria esposa e para a esposa do seu vizinho, pequenos detalhes que desvendam o grande relacionamento que estava escondido.
A trilha sonora - toda composta de temas latinos - dá uma aula de som ao pontuar emoções iguais em pessoas diferentes com músicas que universalizam o sentimento de amor quando são adicionas às imagens.
Kar-Wai é conhecido pela sua sensibilidade ao falar de sentimentos. Premiado com a Palma de Ouro, o diretor fez de Amor à flor da pele a segunda parte de uma trilogia, iniciada com Dias Selvagens (1990) e finalizada com 2046 - Os segredos do amor (2004). É uma ótima oportunidade de perder o preconceito com os filmes asiáticos e uma grande chance de se deixar envolver pelos noventa e oito minutos de poesia audiovisual propostos pelo diretor.
Versão americana do trailer, mas ainda assim sem perder o charme e sem deixar de transpirar paixão
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