Lágrimas de sangue

sexta-feira, 27 de maio de 2011

por Abrahão Andrade

"O quê? Aqueles filhos de chocadeira?", disse dona Sebastiana Teixeira sobre os ateus. Não faltam "elogios" como este para definir os descrentes em deus. É um rosário de espinhos condenatórios que beiram os contos de ficção ou terror. O país com múltiplas religiões, todas coexistindo de maneira mais ou menos pacífica, ainda não aprendeu a lidar com aquele que não tem nenhuma crença.

Conversei com alguns cristãos sobre as razões desse preconceito e é claro que nenhum deles assumiu claramente a antipatia pelos ateus, pois vivemos em tempos policamente corretos. Mas o estudante de direito Fábio Ciolli dá algumas dicas dessa fobia. "Acredito que a pessoa se torna cética por falta de um ambiente familiar adequado, a falta de instrução pode levar o homem ao negativismo... A família de hoje anda desestruturada, casais se separam, brigas frequentes. A criança se torna materialista sem perceber".

O negatisvismo mencionado por Fábio é um pensamento compartilhado pela maioria das pessoas que possuem fé, em relação aos desprovidos dela. Ao se tornar ateu, o indivíduo se torna emancipado e liberto de preceitos morais. Por causa da sua descrença, ele estaria autorizado a praticar todo tipo de crime, como matar e roubar, já que ele não terá que prestar contas. A hostilidade aos céticos não se limita apenas a desconfortos causados pela dificuldade em aceitar o “alguém sem deus”, mas promove exemplos reais na nossa convivência. “Já namorei uma evangélica, e não falávamos de religião para evitar brigas, mas quando seus pais souberam que eu queria distância da igreja, eu simplesmente fui proibido de frequentar a casa dela”, conta Rafael Torres, que já acostumou com o olhar das pessoas quando revela sua opção religiosa ("como se eu tivesse algum tipo de doença de pele").

Rafael Torres tem uma tatuagem no peito que diz: “I will always love my mom”(Eu sempre amarei minha mãe), nada mal pra alguém sem coração. A ignorância do senso comum é tamanha, que chegam a associar ateísmo ao satanismo. Para elas, o descrente não só negaria a deus, como colocaria um vermelho e chifrudo diabo em seu lugar. "Amo minha família, meu trabalho, meus amigos", defende-se Rafael Torres. "Tenho um prazer indiscritivel em me sentir vivo, e mesmo assim sou chamado de insensível.”

Sem vida espiritual
Por outro lado, ter Cristo é ter caráter. Mesmo com a enxurrada de casos de padres e pastores comentendo toda a estirpe de barbaridade, ainda é muito usual dizer-se “de deus”, como maneira de afirmar a bondade. Vejamos o caso do professor de biologia Carlos Ávlis, que ensina em um colégio da rede estadual que preferiu não dizer o nome. “Já tive dificuldade na hora de conseguir um emprego, pois numa entrevista me perguntaram o que guiava a minha vida espiritual. Eu simplesmente respondi que não tinha vida espiritual, por não crer em espírito. Convencer a direção de que eu era um profissional ético demorou algum tempo”.

Profissional ético sim, que não é apenas professor, mas lojista, gerente, carteiro.... taxista. “Certa vez, estava levando um casal de senhores, que me trataram muito bem até o homem perguntar alguém pode não acreditar em um deus", lembra o motorista Albino, que há três anos trabalha na praça. "'Você acredita em deus, não é?', insistiu o passageiro. Meio envergonhado, pois previa que ele não iria aceitar bem, eu disse que não." Foi o suficiente para que o até então simpático e falante casal fechasse a expressão do rosto e passasse o restante da viagem em silêncio.


Não se discute
E quando a descrença nasce em um berço cristão? Renato Hermosa, pernambucano de 16 anos, é filho de pastores! “Comecei a me interessar pelo assunto aos 14 anos. Ficava horas vendo alguns vídeos no youtube do cientista Richard Dawkins e artigos de filosofia. Eu me descobri ateu, mas ainda não tive coragem de assumir isso pro meu pai. Sei que isso o magoaria muito, pois é muito orgulhoso da nossa família e é exemplo pra igreja. Não sei se vou dizer a verdade ele um dia”. Hermosa se justifica. “Na minha criação, sempre ouvia histórias sobre como seria o inferno, e como as pessoas que não amam Deus sofrerão por isso. Meu pai nos advertia que o inferno é um lugar de sofrimento eterno, onde as pessoas chorarão lágrimas de sangue. Ele acredita nisso como algo real! Se eu disser que Cristo não representa mais na minha vida, vai ser o mesmo que carimbar meu passaporte pras lavas de fogo eterno”, conclui num tom de brincadeira.

Os entusiastas do entrosamento entre as pessoas “de Jesus” e os “desalmados” defendem que eles podem conviver sem guerra. Existe uma galera mais nova, mais aberta ao diálogo, que mantém amizades normais e sem grilos de crença. Geralmente, o ateu aceita melhor o religioso, pois terá de conviver com pessoas religiosas por toda a sua vida. É mais uma questão de sobrevivência social, mas que acaba resultando num exercício de tolerância verdadeira. Do lado dos “de Jesus”, a coisa é um pouco diferente, tendo alguma resistência especialmente dos evangélicos mais conservadores. Não é segredo, conservador é conservador. Mas há pessoas rabugentas de ambos os lados. O que os mais desencanados sugerem é que este assunto não seja frequente nas mesas de bar, e nos momentos de descontração em que muita gente tá envolvida. Fernando diz: “Tem gente que não quer discutir religião. Essa pessoa é sensível e ouvir alguém se pronunciar contra a sua fé, pode soar como um insulto pessoal”, acredita o aspirante a publicitário Fernando Potiguara, 19 anos, que é católico apostólico romano, usa dreads e alargadores, mantém sua fé, e também mantém seus amigos sem fé. “É tudo tranquilo! Saio à noite pra curtir, comparo meus amigos ateus aos vampiros, digo que eles não têm reflexo no espelho e que derretem com água benta. Eles respondem dizendo: 'o senhor é teu pastor, e você continua pastando.' A gente ri junto e logo mudamos de assunto. Conheço o caráter deles, e isso conta muito mais que uma bíblia embaixo do braço.”

Abecedário da Supervia

por Fernando Fonseca, Hosana Souza, Josias Sabino, Thayara Cristine e Vinicius Freitas

A – Atraso, amigos, aconchego, amendoim. “Sempre três por um real”.

B – Bilhete único, Belford Roxo, barulho, balanço. “Não entendo como as pessoas dormem com esse sacolejo todo!”

C – Coca-Cola, camelô, cansaço, Central do Brasil. “Ainda bem que fico na Central, do contrário me perderia todos os dias. O que eu reponho de sono no trem, não está no mapa”.

 
 
 
 
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