Rezadeiras virtuais

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

por Jefferson Loyola

Desde menino, ele e seus irmãos só iam ao médico pra tratar as “doenças dos homens”, como dizia sua mãe. As doenças espirituais da família eram curadas com rezas pela mãe, que colocava em prática a herança espiritual de suas bisavós, que eram jongueiras, parteiras e rezadeiras. “Estes são três ofícios para quem tem fé”, diz Geraldo Bastos, que como nunca aprendeu o cargo das benzeduras, curas e mistérios, resolveu dar sua colaboração pesquisando e divulgando o assunto. O Fundo Municipal de Cultura Escritor Antônio Fraga lhe deu R$ 8 mil para que criasse o site “Benzeduras, curas e mistérios”, onde relatará a história dessas mulheres que são vistas com muitos preconceitos pela sociedade brasileira, principalmente por adeptos das religiões pentecostais, chamadas de filhas do demônio, feiticeiras e praticantes de magias negras.



O interesse de Geraldo Bastos vem literalmente de berço: é filho do babalorixá Geraldo D’Ogum e Dona Deise, de religião católica e rezadeira. Mas foi apenas em 2005, quando fez um curso de oito meses de capacitação de professores sobre a história da África, que tomou a decisão de estudar este universo sagrado e cheio de mistérios. Descobriu então que essa tradição já existe em Nova Iguaçu há pelo menos 200 anos, coincidindo com a chegada dos africanos escravizados. "Se quisermos ser mais precisos, podemos dizer que o Brasil tem rezadeiras antes de 1500, pois os curandeiros indígenas já possuíam a prática de benzeduras, rezas e curas", afirma o estudioso, lembrando a existência dos curandeiros das tribos Tupinambás e Jacutingas. Este fato é muito confundido, aliás, com as religiões de matrizes africanas, candomblé e umbanda, que com os preto-velhos (entidades idosas, tanto masculinas ou femininas, que viveram na época da escravidão) e caboclos (entidades que viveram nas matas brasileiras, muito ligadas aos povos indígenas), fazem rezas e curam as pessoas com seus mistérios dentro dos Ilês (terreiros ou casas de santo).

Geraldo Bastos arregimentou uma equipe, que está trabalhando desde setembro do ano passado, quando os recursos do Fundo Municipal de Cultura foram liberados. As tarefas foram divididas em pesquisas, leituras de livros e diálogos a respeito do assunto. No entanto, devido ao carnaval e à quaresma, todos os trabalhos foram interrompidos este mês. "As rezadeiras não gostam de falar sobre este assunto neste período porque acreditam que o espírito maligno está à solta e têm grande poder nesta época", pondera o estudioso. Uma consulta à Iyálorixa Ignez Teixeira, uma estudiosa da história da África, confirma a preocupação do organizador do site. “Neste mês, comemoramos a festa de Lorogum. Nesta festa, os orixás vão guerrear e deixam o Aiyê (nosso mundo) e vão para o Orun (mundo deles), deixando-o livre para os eguns (espíritos malignos), que com a ausência dos protetores de cada pessoa, ficam mais fortificados”, conta a Iyálorixa.

Razão propulsora

Quando entramos no “mundo das rezadeiras”, ingressamos em uma façanha afro-brasileira, que durante muito tempo, no entroncamento das culturas, criou maneiras de se fazer presente em novos espaços geográficos com a força de uma tradição que precisa ser mais pesquisada. "Esse sincretismo religioso nos mostra como é possível resistir através de rezas, fazendo benzeduras e operando curas", afirma Geraldo. "Também nos faz despertar que a fé é a razão propulsora de nossos desejos, das coisas que vemos, sentimos e queremos. E que através da palavra bem empenhada nos unimos às outras forças cósmicas para a realização de nossos propósitos e da nossa missão. Com isso é praticamente impossível não assimilar, assim, as rezadeiras a cultura do candomblé e da umbanda, não se esquecendo que todas as culturas se misturam, e uma por mais diferente da outra, possui uma parte similar a da mesma, e assim por diante, formando o Brasil que vivemos em uma grande aquarela cultural e religiosa."

Geraldo acredita que a principal colaboração do site será a de desmistificar a cultura das rezadeiras como algo diabólico, mostrando sua importância para nossa sociedade através da sabedoria e conhecimento populares. O estudioso não descarta, porém, a importância do caráter ecumênico da iniciativa. "Também estamos agregando as rezadeiras evangélicas, que normalmente não são incluídos nesses estudos", afirma o coordenador da Gestar, uma ong que trabalha com questões afro-brasileiras. O projeto teve que ser redesenhado de modo a dar mais ênfase para a qualidade das informações do site, transformando-o em um instrumento de valorização desta cultura de rezadeiras. O cuidado com o conteúdo, no entanto, pode comprometer o prazo assumido com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo ao receber o dinheiro do Fundo Municipal de Cultura. “Estou no meio entre cumprir o cronograma corretamente e qualificar o site", diz Geraldo. "Acredito que conseguirei cumprir os dois”.

Evangélicas

Durante as andanças do projeto, a equipe de Geraldo encontrou mulheres evangélicas que oram com rituais muitas vezes parecidos com os das rezadeiras tradicionais, mas seus conceitos estão diretamente ligados ao protestantismo clássico sem nenhum aporte dos santos da igreja católica, da umbanda, do espiritismo cientifico (Allan Kardec e Bezerra de Menezes, entre outros) ou candomblé. “Apesar de haver grandes transformações nos cultos evangélicos, sem dúvida o toque que ouço hoje e as manifestações culturais, apesar de não ser aceito pelos dirigentes e adeptos, tem muita influência da cultura afro-brasileira, sobretudo da umbanda”, afirma ele. Um exemplo que Geraldo dá é o das mãos que este tipo de rezadeira usa nas cabeças das pessoas nas sessões de descarrego, acompanhadas de palavras e orações muito presentes nas rezadeiras tradicionais.

O projeto está saindo do papel graças à intimidade e ao interesse pelo tema, mas a equipe de pesquisadores enfrentou muitos infortúnios até ganhar o formato atual, com a história e as benzeduras de seis rezadeiras. "Algumas morreram durante a pesquisa, como Seu Zé do Cachimbo, que já tinha 96 anos quando o descobrimos", lamenta Geraldo. Outra rezadeira passou uma longa temporada no hospital, recuperando-se da amputação de uma das pernas. Apesar disso, o site vai estar no ar na segunda quinzena de abril. “Nada acontece por acaso neste mundo das rezadeiras, feito de rezas e mistérios e é com os mistérios que estamos conseguindo alcançar nossos objetivos”.

1 Comentários:

Hosana Souza disse...

Ótimo texto, super interessante. Parabéns Jefersson.

Postar um comentário

 
 
 
 
Direitos Reservados © Cultura NI