por Josy Antunes
Rio de Janeiro. Zona Sul. Botafogo. Morro Dona Marta. Comunidade Santa Marta: a Favela “modelo”, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, ocupada desde o final de 2008 pela Polícia Militar, através do projeto Unidade de Polícia Pacificadora – a UPP. Cento e vinte policiais treinados especialmente para policiamento comunitário, sete câmeras de segurança e cerca de 10 mil moradores protegidos dos traficantes que se instalavam em 4 bocas de fumo: estes são os números oficiais divulgados pelos principais veículos de comunicação do Rio. Um dos números que não é revelado é o da quantidade de “duras” que um morador do local é submetido durante um dia. Ou a de moradores que apontam a existência de excessos nas ações dos policiais. Ou ainda, as 2 mil cartilhas sobre a abordagem policial, distribuídas em menos de um mês de lançamento. E é justamente sobre os números e vozes “não oficiais” que trataremos nesta matéria: Santa Marta contada por Emerson Fiell, rapper e idealizador do Grupo Visão da Favela Brasil, com quem pude conversar no dia 03 de março, no interior do tradicional Bar do Zé Baixinho.
“As políticas vão mudando as teorias das políticas. Antigamente falava-se em, literalmente, remoção das favelas. Hoje a política não é falar que vai remover, mas o que ela está fazendo é encarecer as coisas”, diz Fiell, levando o rumo da conversa ao entendimento dos reais problemas. Com a pacificação da favela, um aluguel que antes era R$100, hoje tem seu preço triplicado, por exemplo. Além das contas de energia elétrica e água, que passaram a ser cobradas. “Como o pobre vai pagar se ele ganha quinhentos e pouco? A política vai, de forma que você não perceba, te removendo”, declara ele, criticando em seguida: “Só o que funciona aqui dentro é a UPP, de forma ainda negativa”. Fiell, assim como todos os moradores, alega não ser contra o projeto da Secretaria de Segurança. A oposição é apresentada quanto aos excessos ocorridos e a ausência de outras iniciativas governamentais na favela. “Tem que funcionar Secretaria de Trabalho aqui dentro, de Cultura, de Educação, de Saúde... É o caso de toda a população começar a refletir sobre qual é o real interesse do Governo do Estado com a política de urbanização. Pobre não é caso de polícia. É caso social, que precisa ser discutido”.
O próprio estabelecimento onde acontecia nossa conversa representava um dos casos do excesso sentido pelos moradores: o Bar do Zé Baixinho ganhou um limite de horário para a execução de músicas em alto volume, o que nunca foi necessário em seus 20 anos de funcionamento. “A polícia foi imposta, o muro foi imposto, tudo está sendo imposto”, alega o ator Alan Barcelos, um dos articuladores do Visão da Favela Brasil. Os muros citados totalizam um investimento de mais de 3 milhões de reais, além do custo das instalações das câmeras – gastos estes que “convivem” com casas cuja estrutura é precária.
Segundo os representantes do Visão, para a implantação da UPP, houve apenas encontros técnicos para anunciar à população as medidas que seriam tomadas. Mas a falta de confiança na polícia e a ausência de um diálogo que permitisse a opinião dos moradores impossibilitaram a boa repercussão das reuniões. Alan, que na época acreditou que via “a cara de uma nova polícia”, hoje lamenta: “A polícia continua sendo a mesma polícia truculenta que subia o morro antigamente: A mesma que abusava do morador. É a mesma coisa, não tem diferenciação nenhuma”. “Só mudou de teoria”, completa Fiell, indagando em seguida: “O governador mesmo segregou a instituição da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Tem a “boa”, que é a UPP, e tem a “ruim”, que é a que patrulha as ruas. Se é uma coisa só, da mesma corporação, como é que está segregado?”.
Pensando em levar informação aos moradores da comunidade, garantindo a preservação de seus direitos, Fiell liderou a produção da “Cartilha popular do Santa Marta – Abordagem Policial”, lançada no dia 18 de março. “Nesse documento não tem absolutamente nada que a polícia desconheça”, lê-se na apresentação redigida por Fiell, que foi inspirado por uma cartilha produzida em 2006 pelo Centro de Defesa de Direitos Humanos de Sapopemba, em São Paulo.
A partir da ideia, foram formadas as parcerias, que contribuiriam com o domínio e esclarecimento sobre os direitos garantidos pela legislação. Uniram-se ao projeto representantes da Justiça Global, a Presidência da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ, a Anistia Internacional e, oriundos da própria comunidade, o Grupo ECO e a Associação de Moradores, entre outras instituições presentes nos créditos do livreto. “Foram 9 meses de produção. Literalmente um filho gerado, que nasceu e que tem prós e contras”, compara o rapper.
O lançamento aconteceu em frente à primeira estação do bondinho do Santa Marta e teve a presença de líderes políticos e sociais e de muitos moradores da comunidade. “A melhor forma de combater a violência é com diálogo. Não adianta o cara puxar uma arma e você puxar outra. Violência gera violência. E a cartilha vem pra isso, pra dialogar de uma forma didática”, declara Fiell. Os representantes policiais, porém – em especial a Capitã Priscila Azevedo, que lidera a ocupação no Santa Marta – não compareceram e se recusam a qualquer pronunciamento sobre a cartilha, mesmo após o recebimento do ofício que os convidava. “Se a polícia não se pronuncia é porque alguma coisa está errada. Então isso só mostra que a gente está no caminho certo”, alerta o idealizador da cartilha, que foi rotulado de “marrento” pela equipe de policiais.
De acordo com as autoridades políticas presentes na ocasião, cujas falas estão registradas em vídeos no You Tube, a Cartilha nunca deveria ter sido necessária e se demonstraram insatisfeitos com o fato de que somente através dela os direitos puderam ser respeitados – opinião reafirmada por Fiell: “O policial na academia já tem que aprender o que ele pode e o que não pode. Só que ele sai e deturpa tudo. Nem todo mundo quer respeitar o negro, o morador de favela... Acham que sempre são o perigo da sociedade e não detêm conhecimento, mas a gente está mostrando que não é assim”.
“Se você é mulher, só poderá ser revistada por policial feminino”, “Não há lei no Brasil que te obrigue a andar com documentos” e “A abordagem policial não pode acontecer baseada em sua orientação sexual”, são alguns dos “ensinamentos” contidos didaticamente na cartilha, que está sendo grandemente solicitada por moradores de outras favelas e periferias. “A maioria do nosso país está sofrendo violações aos direitos humanos. A partir do momento que você conhece seus direitos, as coisas começam a mudar. Se você não conhece, não tem como você reivindicar”, alerta Fiell que, após a produção da cartilha, já baniu policiais que não possuíam mandato judicial para entrar em uma residência. “O lar é inviolável”, afirma. “Coisas que eles vinham fazendo, hoje não vão fazer mais”. A cartilha contém ainda um exemplo de formulário de denúncia e contatos de órgãos do poder público e da sociedade civil que podem ser procurados caso alguma violação aconteça.
Além da divulgação da cartilha para possibilitar que o maior número de pessoas tenha acesso à informação, será agendada uma visita do Ministério Público ao Santa Marta, para que todas as denúncias, não só no âmbito policial, sejam recolhidas, discutidas e solucionadas. “Eles vêm pra escutar realmente o que está acontecendo, que a grande mídia não mostra, omite”, explica Fiell, aquele que juntamente com o Visão da Favela Brasil, no núcleo de cinema Cria Filmes, levou a realidade da favela para o mundo, com o curta internacionalmente premiado “788” - título trazido do número de degraus existentes no Santa Marta e que também intitula uma das músicas do rapper.
“A política de governo do Sérgio Cabral é essa: polícia tem que afrontar mesmo, vamos sitiar e acabou. Ele mesmo já falou: “As mães das favelas são fábricas de bandidos”. Aí eu respondo pra ele: “Crime não é genético”. A pior violência é quando ele deixa uma criança sem comer, sem escola, sem acesso à cultura. Se ele está governando o povo, ele tinha que cuidar dele e não hostilizar”, encerra Fiell.
Links:
Acompanhe o trabalho do Visão Favela Brasil no blog: visaodafavelabr.blogspot
Para fazer download da cartilha: clique!
Leia aqui a entrevista na íntegra com Emerson Fiell.
1 Comentários:
Isso é somente uma das coisas que faltam à "grande" imprensa brasileira: mostrar o que acontece pelos dois lados.
Bela reportagem!
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