Terminou nesta sexta-feira a temporada da peça Orire – Saga de um herói que confrontou a morte. A peça estava em cartaz no espaço cultural Sylvio Monteiro havia três semanas e foi um grande marco na história da cultura da cidade por várias diferentes razões.
Foi a primeira peça a se manter em cartaz em vez de fazer uma apresentação única. Para Rafael Cassou, o operador de luz do espetáculo, esse é o passo inicial para que outras produções possam vir para a cidade e dinamizar a cultura teatral da Baixada. “A gente percebe que o público que ir ao teatro, então temos que oferecer a eles coisas de qualidade”, afirma. “Quando se fica em cartaz em algum lugar, mesmo com a produção toda paga, você passa a se importar com o lugar, com as pessoas, e passa a querer que elas fiquem em contato com o teatro”, acrescenta Gustavo Mello, autor, produtor e diretor da peça.
A ideia de estreia do espetáculo ser em Nova Iguaçu não surgiu do nada, assim como a própria peça. Em janeiro foram iniciadas oficinas de teatro, dança e samba de roda no terreiro do Ilé Omiojúaro, e dessas oficinas fizeram parte alguns dos atores que fazem o espetáculo, como a Daniele Duarte e o Jorge Faria, que nunca haviam participado de um espetáculo antes, e o Noan Moreira Gomes, que fez a trilha sonora. A partir disso surgiu a ideia de estrear a peça aqui, para fortalecer os laços com o terreiro.
Identificação
Como disseram alguns dos alunos que assistiram as sessões, a peça se destaca por apresentar pontos da cultura africana e do Candomblé de uma forma diferente da que geralmente sê vê, por exemplo não falando diretamente dos Orixás, mas contando uma história clássica de um jeito tão rico que muitos se identificam.
Além das sessões noturnas, a equipe fez apresentações extras à tarde, para turmas de colégios que desejassem assistir ao espetáculo. Vieram colégios tradicionais, como o IERP, e alguns alunos de escolas até de São João de Meriti. A grande surpresa para o elenco foi a aceitação do público. “Gente, todo dia isso lota!”, exclamou Valéria Mona, em uma das apresentações. E a grande surpresa para o público foi a identificação com a história. “Eu até chorei!”, conta Camila, uma das estudantes que assistiu ao espetáculo.
Depois das sessões extras, o elenco se reunia no palco e batia um papo amigável com a plateia, para receber a resposta do público e poder aperfeiçoar sua peça. "O teatro é vivo. Você nunca vê duas vezes a mesma peça. Cada apresentação é uma apresentação só", conta Rafael.
É uma peça forte, musical e muito simbólica. Personifica os sentimentos, que os atores demonstram com total perfeição. “É sobre escolhas”, acredita Gustavo. “A peça parte do tema de Ori, que quer dizer cabeça boa. Segundo um conto africano, o ser humano depois que é moldado no barro e recebe o sopro da vida, escolhe a sua cabeça. Se você escolher uma cabeça boa, terá uma melhor forma de solucionar os problemas da vida. Se não, encontrará mais dificuldades. Não quer dizer que o destino está traçado antes do nascimento, pelo contrário, quer dizer que ele é feito das suas próprias escolhas, e que elas te acompanham até o fim da sua vida.”
Convidados especiais
Durante uma das apresentações, dois convidados especiais se juntaram à plateia. Natasha, uma porto-riquenha lindíssima que já havia assistido a uma apresentação antes; e Roger, um norte-americano, que apesar de não entender uma palavra em português ficou encanto com o espetáculo. Ambos fazem parte de um programa da antropologia e foram convidados pelo próprio Gustavo Mello. “Visivelmente é incrível! As cores, as danças, as cenas, os personagens... tudo é muito encantador”, diz Natasha. Ela veio para o Brasil à procura de música, e acabou descobrindo Nova Iguaçu. “Eu vim para fazer um estudo sobre as minhas raízes, sobre mim, e por alguma razão terminou aqui. A arte me encanta, a música me encanta, e pra mim, estar aqui é incrível.”
“Eu achei a peça excelente. É uma história muito emocionante”, conta Roger, que também afirma não ter tido dificuldades em entender a peça, mesmo sem entender a língua. “Um corpo é um corpo em qualquer lugar do mundo. As expressões sempre serão expressões, e os sentimentos, que foram muito bem expostos, são entendidos. A melhor parte é que eu só me perdia um pouco nas partes onde havia muito diálogo, mas a Natasha me ajudou bastante.”
Nenhum dos dois faz parte do candomblé, mas gostaram de ver as idéias da religião expressas em uma peça de um modo diferente do habitual. “Queríamos fazer as pessoas identificarem o terreiro como um lugar de cultura, um espaço de afirmação política; construir uma linguagem que tivesse a ver com os modos, as cores, e com temas pertinentes da cultura e do modo de ver o mundo. Todos os brasileiros têm uma identidade com isso. Saibam ou não, admitam ou não”, aposta Gustavo.
Uma peça viva, que se modifica a cada apresentação, que cresce junto com seu público, que emociona a quem assiste e faz todos – sejam do Candomblé ou não – pensarem melhor nas suas escolhas. Linda e emocionante. Onde os personagens não têm nomes, pois não precisam. Eles existem e agem, apenas isso. E isso, apenas, basta.
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