Incabível prisão

sábado, 27 de novembro de 2010

por Jefferson Loyola

“Encontrei-o, onde não esperava encontrar. Após anos de procura, olhar perdido ao passar em Mesquita e Nilópolis, posso respirar e dizer: encontrei-o. Essa respiração, que aparentava em meus sonhos ao encontrá-lo, era de tranquilidade. Mas no calor e na multidão atrás de grades, tornou-se ofegante.”

Sexta-feira, 26 de novembro, assisti ao filme “Sonho possível (The blind side)” junto de presos na carceragem da 52ª DP. “É triste ver vocês vindo até aqui, exibindo os filmes e após, indo embora. Enquanto nós permanecemos”, disse um dos presos para mim, assim que ia entrando no pátio. Até o término do filme, achava que esta seria a coisa mais marcante que poderia ter me acontecido ao visitar pela primeira vez uma carceragem. A experiência me angustiava de tal forma que é dificil descrever com palavras.

Ao entrar e não conseguir olhar para os presos, sentei junto da Yasmin Thayná, também jovem repórter, no primeiro lugar que vi e olhei para a tela onde seria exibido o filme. Mesmo que o filme ainda não tivesse começado, o meu olhar fixou e não conseguia virar meu rosto para onde os presos se encontravam. Quando não estava prestando atenção no filme, só conseguia olhar para minha companheira de trabalho.

O filme e a Yasmim eram minha válvula de escape do mundo que me encontrava, atrás de grades. Fazia-me sentir como estivesse em casa, em pleno domingo, assistindo a um filme deitado no sofá, mesmo que o chão da carceragem fosse bastante desconfortável. O filme iniciou e em pouco tempo havia sido interrompido. Alguns dos presos iam receber visitas e o filme deveria ser pausado, pois chamariam os nomes e não podia haver barulho algum.

Os nomes são ditos e o filme recomeça de onde parou. Pausa novamente. Mais silêncio, pois novos nomes seriam chamados, porém desta vez era para transferências. Nesses intervalos, meu rosto parecia que havia dado pause junto ao filme. Permanecia encarando a tela. Sem interrupções o filme prossegue. Passa um pouco mais de 25 minutos e quando o personagem principal do filme, Michael Oher, sofre um acidente de carro, o filme é pausado novamente. “Vai invadir o confere”, gritou um dos presos. Essa cena foi forte para mim, porém mesmo assim, a fala que ouvi inicialmente do preso ainda me deixará bastante atordoado.

O confere pode ser definido como uma inspeção da carceragem e a retirada dos latões de lixo de dentro da mesma para a limpeza. Os latões saem com o lixo do dia e voltam vazios. Os presos ficam de pé e em dois blocos, uma parte à direita e outra à esquerda, deixando o meio livre. Entram os faxinas (presos de confiança do sistema), todos com barras de ferro, fazendo a inspeção, retirando o lixo, e um deles, em especial, batendo o ferro na grade. Ele bate em todos os ferros da grade para ver se há algo de errado. Os zunidos no meu ouvido permaneceram até o momento que o filme terminou.

Novamente após a interrupção é dado o play. “Vamos pagar a alimentação. Para um pouquinho e depois continuamos”, disse um dos presos. Pagar alimentação é a distribuição da comida. Esta foi a penúltima pausa. Pois logo após, mais um intervalo foi feito, cinco minutos antes de terminar o filme. Esse, também impactante, ocorreu devido à liberdade de três presos. Com a notícia, todos os presos levantaram e fizeram meio que um “ritual” no final gritando liberdade e aplaudindo a saída dos companheiros de cela.

O filme prosseguiu e sem mais nenhuma interrupção, e ao término os presos aplaudiram. Não havia mais nada que me fizesse esquecer o medo de estar ali, pois o filme já havia acabado. E após horas ali dentro e sem ao menos olhar em direção aos presos, meu olhar se voltou para eles. Tudo que vinha acontecendo até aquele momento perderá todo o sentido com o olhar que me deparei. Já havia se passado quatro anos. Nunca esqueci seu rosto. Aquele olhar culpado se misturou ao meu e não conseguia pensar em outra coisa. Queria sair dali o mais rápido possível. Não olhei mais para eles e ao sair, não resistindo, voltei meus olhos para a cela. Um olhar de prisioneiro se cruza com outro de liberdade, tendo como barreira as grades.

11 de setembro de 2006. Havia acabado de completar 15 anos no dia anterior. Cursava o primeiro ano do ensino médio e “matei” aula para ir ao Top Shopping junto de amigos. Estava no terceiro piso, em frente à propaganda da Sky, assistindo ao clipe do Chris Brown – Wall to wall. Recordo-me deste dia como se fosse ontem. Não esqueço nenhum detalhe. Ele estava encostado na pilastra vendo o mesmo clipe que eu. Os olhares foram trocados, e despistando amigos para não perceberem nada, troquei telefone. A ansiedade bateu assim que cheguei em casa. Liguei imediatamente. Aquela voz serena era inconfundível, até mesmo pelo telefone.

Amigos e amantes. Sem ao menos trocar um beijo, nos encontrávamos todos os dias no mesmo local e na mesma hora. Foi à época em que meus estudos enfraqueceram, minhas notas caíram e minha presença, dentro de sala de aula, não era vista. Passávamos horas e horas juntos. Conversávamos sobre as coisas mais lindas e bizarras que se pode imaginar. Ajudava-o no inglês e nas matérias que estava de recuperação, esquecendo das minhas. Lembro-me que ele estava na sétima série, estudava em Nilópolis, porém morava em Mesquita com a mãe. De vez em quando visitava o pai, que morava no local onde estudava. Seus pais eram separados, foi a primeira vez que soube da verdadeira existência de separações paternais. Antes pensava que era tudo coisa de novelas.

Esta história foi se prolongando até que meu avô faleceu, um pouco antes do natal de 2007. Claro que neste meio tempo, entre 2006 e 2007, tive que conciliar um horário que não fosse o mesmo de minhas aulas. Com o falecimento, viajei para Minas Gerais e fiquei um tempo na casa da minha avó, estava de férias no colégio e isso não me impedia de ficar lá. Quando voltei, duas semanas depois, fiquei sem graça de ligar e tentar reaver contato. Aliás, viajei e com toda a confusão familiar não tive tempo de avisar.

Passaram o natal e o ano novo. A vontade de ligar nestas datas festivas foi imensa, mas não tive coragem. Quando veio a coragem, não consegui. O número havia sido trocado. Pensei que havia digitado o número errado, então conferi no meu dicionário de inglês do colégio, o mesmo que anotei seu número quando o conheci, na ultima folha. Sim, o número estava certo, mas não era mais o mesmo. A saudade batia e tentava falar com ele de qualquer forma. Procurei no orkut, google, MSN. Na época não existia twitter e facebook, pois acho que seria mais fácil. Enfim, não achei. Tive que me conformar, embora toda vez que fosse até Nilópolis, ao entrar no ônibus, sentava na janela. Talvez o visse pelas ruas.

Esse olhar de tanto tempo me deixou gélido, pela situação em que se encontra. Sei que ele notou minha presença, sei que me reconheceu, sei que algo sentiu. Era mais que físico. Como se fôssemos gêmeos. Não precisamos ouvir uma palavra do outro para saber o que queremos dizer. Como se sentíssemos, juntos, cada momento. Após essa experiência, fui para o Sylvio Monteiro e tentei me distrair. Mas as lembranças me atordoaram quando entrei no meu quarto. Lágrimas foram derramadas a noite inteira ao som de Chico Buarque. Aquela cena não saía da minha memória. "Sofrer a tortura implacável. Romper a incabível prisão. Voar num limite improvável. Tocar o inacessível chão" - Chico Buarque - Sonho Impossível.

Só me resta uma única dúvida, que me leva da paz ao caos: Fingir que nada aconteceu e levar minha vida adiante, ou reconhecer os fatos e voltar correndo para a prisão? Por mais que eu não queira, a ansiedade toma conta de mim e minha volta a cela é quase prevista.

4 Comentários:

amigo, que historia linda, isso é real? nossa me emocionei muito, com a riqueza de detalhes, com os personagens dessa historia, com as situações, consegui visualizar isso como se eu tivesse vivido a historia junto. parabens. e se vc acha q deve procura-lo, faça o q seu coraçao mandar :)

Anônimo disse...

Sem palavras. *-*
Tanto o texto quanto sua essência em si estão ótimos.

GL (yn)

Alexs Tcho disse...

meu anjo, sabe o que teu coração quer.

Paola Bracho disse...

Hum... Loyola!

Postar um comentário

 
 
 
 
Direitos Reservados © Cultura NI