por Yasmin Thayná
Acordei cedo. Tomei uma caneca de Nescau. Dei um beijo na testa de minha avó e disse "tchau," ela me disse: "vá com Deus. Vai dar tudo certo, minha filha." Não vi o pai. Coloquei a mochila nas costas. Peguei um ônibus cheio. Subi a passarela da Estação Ferroviária e avistei o centro cultural: estava atrasada uma hora. Andei depressa. Sentei-me na poltrona com o coração acelerado: hoje são vinte, o dia que a casa cai.
Bela discussão. Talvez todos estejamos equivocados e sejamos imbecis de estar discutindo algo que nos pertence e só nós podemos ser justos com nós mesmos, já que o mundo é cruel e dominado pelas elites.
Olhei o relógio e marcava 14:45: vou pegar meu resultado. Li "não apto" no último nome da lista: Yasmin Thayná de Miranda Neves a suja que estragou a linda relação limpa de aprovações. Sempre tem um fodão para estragar a relação.
Passei pelos meninos no pátio forte. Aliás, eu era a Yasmin Thayná: referência artística e pedagógica da FAETEC de Nova Iguaçu. O retrato da disciplina era eu. Manti um orgulho que não me pertencia e uma pessoa que nunca fui.
Chegando na Via-light, o sinal fechou. Uma lágrima escorreu pelas minhas gigantescas bochechas. Eu vi o Julio Ludemir dizendo no calçadão de Nova Iguaçu para mim que eu poderia não ter tanto talento, mas eu tinha compromisso. Só conseguia pensar nisso andando com a sensação ruim cravada em um rosto manchado e sem identidade que não era meu. As lágrimas que caíam provavam a minha incompetência em tornar o choro no sorriso.
Sentei na mesa de praça da Via-light. Coloquei minha mochila que pesava o dobro naquele momento. Chorei. Desabei sobre os filmes de Robert Bresson, Alain Resnais, Truffaut, Laurent Cantet, Stephen Frears e Godard que me acompanhavam. Senti a dor das cenas de "Hiroshima, meu amor" e a angústia daqueles meninos incompreendidos de Truffaut em busca da liberdade.
Levantei-me e andei. Peguei meu celular. Disquei "mainha" e disse: não fui aprovada. Ela me acariciou com um dos contatos afetivos humanos: a comunicação. Eu chorei. Cheguei em casa. Coloquei a mochila dos franceses no chão da varanda e caí feito um tijolo do vigésimo andar. Ali, começa a mudança de meu personagem. Aquele "não" soou feito um espelho que nunca vi antes. O espelho que mostrou o meu rosto e disse em primeira pessoa: eu sou feia e menor.
Não sou tão foda assim como o Julio me disse. Eu não sou tão diferente e melhor do que qualquer excluído do João Luiz diante da grandiosidade engenheira do mestrado, doutorado e todos os "ado" do engenheiro-professor Mauro Coelho: o professor que disse não a mim. Isso me fez lembrar dos dias em que conversávamos horas. Ele me parecia tão amigo. Mas Fernando Vieira usava a palavra - já dita por Augusto dos Anjos - em suas aulas: "a mão que afaga é a mesma que apedreja." Mesmo nas aulas dele, não havia compreendido os versos íntimos. Mas o profissionalismo é EXATIDÃO! Julio não pode me dar um abraço de final de ano porque ele está acima de mim e ele quem manda. Afinal, ele é o profissionalismo. (Nunca vou seguir esse pensamento ridículo e desumano!)
Isso é comprovado quando vi na outra lista do ensino médio escrito: aprovada. Logo em matemática, matéria que eu nunca atingi a média suficiente para ser apta. Mas Luiz Marcos sempre me ajudou nas minhas diversas dificuldades.
O Mauro me mostrou quem sou. Mostrou toda a beleza falsa voando exatamente naquele momento. Mauro me deu um espelho para que meu final de ano seja o fim longe do "feliz para sempre." Longe da Cinderela e de todos os contos de fada.
Eu não sou tão foda assim como o Wanderson Duke. O amigo que não liguei no dia de seu aniversário, mas sempre dei atenção quando me dizia que eu o faço sorrir nos momentos que ele chora. Nos momentos em que ele precisa de choro, eu dou o sorriso. E quando ele precisa de um sorriso, eu dou três gargalhadas.
A água do banho gelado que tomei, me fez ter a sensação da escravidão brasileira. Os pingos eram como chicotadas em meu corpo. E lá da varanda, pude ver três fios de alta tensão que tinham o marco da existência das pipas. Ainda há moleques no centro da cidade que se divertem com linha, varetas e papel de seda colorido. Havia três pedaços de rabiola preso nos fios de luz: um menor que o outro. Ali estava o meu personagem: o menor das rabiolas.
Lembrei ainda do meu estudo antropológico que fiz nas quintas desse ano na 52ª dentro de um pátio cujo ar é quase rarefeito. Veio na mente justamente o dia em que o Mike do "Sonho possível" que refletiu na entrada zombada de um homem negro, obeso e flamenguista que tinha sido preso naquele dia: "olha só quem chegou, o Mac Lanche feliz. Tá lá no filme. Na telona. Alá você, Mac. Acabou de dizer Mac," disse os presos. Eu me senti exatamente o Mac no momento em que ele foi empurrado para o seu lugar: lá trás que é o lugar mais longe, desconfortável, sujo e quente da cadeia. A única diferença entre eu e o Mac lanche feliz é que ele foi preso por ter sido ele mesmo e eu por não ser. E que apesar disso, tenho que cumprir com as minhas obrigações mesmo presa. Eu nunca fui tão foda assim.
Dia vinte de dezembro, o dia mais triste e realista de dois mil e dez. Feliz dezoito anos. Estou bem vinda a vida.
ao wanderson duke
7 Comentários:
não entendi a necessidade desse texto.
helio
É a fraqueza que nos torna fortes, pelo menos é assim que enxergo , é identificando e apontando nossos própios erros que nos tornamos melhores.E pra não deixar passar batido , eu também não sou tão ''foda'' assim , melhor, nem um pouco.
Mas , me situei legal na sua situação através do texto , isso é bom , preciso melhorar nisso.
Bela cronica , abraço , depois passa lá no meu blog e dá uma olhada, vou postar em breve...
nem sempre se escreve por necessidade, mas acho que nosso amigo Helio não entendeu assim,porém minha jovem e adorada escritora, cineasta... em fim, artista por natureza,sinto sua falta e de estar com vc vendo o mundo com os seus olhos que pra onde olham só veem cultura!
só voltando ao debate... a necessidade nem sempre é de quem escreve, pois esse já o sabe, na maioria das vezes é de quem lê.
muito obrigado por escrever!
Creio que falte sensibilidade a uns,
ou apenas a máscara da dureza perdure. Você aqui foi a fodona de mostrar sua dor...
Força, que não lhe falte!
Um abraço.
Amoeba.
ainda bem que não há necessidade para este texto. os textos belos não têm necessidade alguma. o belo é o belo - seja no teatro, na música ou na literatura. parabéns, yasmin. este é um texto que só faz corroborar seu talento e seu compromisso com o projeto. feliz natal. beijos
Yasmim, só agora, quase uma semana depois, leio seu texto. Não há nada que eu, ou qualquer outro aqui, possa dizer para aliviar a dor que você sente agora. Mas posso lhe dizer uma coisa, todos os "fodas" do mundo passaram por situações como a que você vive agora. Ou então não seriam fodas. Quase sempre aquele que só vence é porque nunca se propôs um desafio de verdade. Michael Jordan, o melhor jogador de basquete da história, dizia que na maior do tempo ele erra, o que acontece é que seus acertos são muitos visíveis. Por fim, um clichê do clichê, de tão desgastado, mas, quer saber?, me ajudou quando precisei: "o que não nos mata nos fortalece". Força Yasmim, você tá viva no mundo e ele agora é todo seu! Ah, e seu texto me deu vontade de conversar sobre ele. Até 2011! Ecio Salles
Eu, menina! Você não me conhece, mas já ouvi o Fernando Vieira falar super bem de você, e também já a vi no blog dele. O que posso lhe afirmar é que provas não provam nada, e que pelo que vejo, neste ano vc realizou coisas que escola nenhuma é capaz de dar. Eis aí sua sabedoria, sua busca pela arte, pela vida, pelas coisas que realmente valem a pena. Imagino que o momento deva ser difícil e triste, mas não há nessa vida dor que o tempo não cure.
Paz e sucesso em 2011! Você é grande!
Abçs!
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