por Hosana Souza
Na manhã do último sábado ensolarado, ainda cedo, preguiçosamente me arrumei para o trabalho. Meu destino era um evento do Programa do Governo Federal “Brasil Alfabetizado”. Logo ao entrar no pátio da Escola Municipal Monteiro Lobato, me vejo recepcionada pelo Mickey e por uma animada banda a tocar O Barquinho, de Roberto Menescal. Sorri. A banda formada pelas crianças da escola com seu uniforme azul era conduzida por um maestro caprichosamente vestido com um terno. Em alguns minutos, descobri que o alegre personagem da Disney era, na verdade, um morador do bairro da Posse. E que não enxergava nada com aquela cabeça gigante de espuma que lhe tranasformava. “É insuportavelmente quente”, resmungou Adriano França, o Mickey, enquanto distribuía maçãs do amor para crianças com o olhar encantado.
Para entrar no pátio da escola é necessário atravessar um corredor, branco e largo, com alguns degraus. Eu o fiz na companhia de Dona Ione Vital, de 69 anos. “Eles não podem fazer escada sem corrimão, fica muito mais dificil”, disse ela enquanto a auxiliava na subida dos cinco degraus. Ao finalmente entrar no pátio e subir o olhar, fui tomada por uma explosão de cores, movimentos, aromas, sons. Crianças, adultos, idosos. Filas, apresentações, brincadeiras, politicos. Dezenas de coisas acontecendo em um pequeno espaço de tempo e lugar.
Dona Ione, aluna do Brasil Alfabetizado, tratou de me explicar que ali não estavam apenas os participantes do programa. “Tem gente que vem pelo Bolsa Familia, outros pelos documentos. Meus documentos eu já tirei e como consegui a aposentadoria não vou pedir o Bolsa Familia, acho uma injustiça pegar o dinheiro que fará falta para alguém”, me revelou a sorridente moradora da Estrada do Ambaí, em Miguel Couto.
A simpática senhora que estuda em uma escola próxima a sua casa me confessou ter ido apenas para agradar a professora. “Ela é um amor, estou na turma dela já há dois anos. Estou aprendendo a fazer umas continhas, mas só com dois números e sem diminuir porque eu me embolo”, disse orgulhosa. Dona Ione teve doze filhos, hoje vivos estão apenas nove. “A vida agora é muito mais fácil que na minha época porque o governo tem vários projetos de ajuda. Na minha época era o angu com feijão e só, mas ninguém passou fome. E coloquei todos na escola também”, conta ela, já se encaminhando para a fila de verificação de pressão arterial. “Já consigo ler que ali é vacina! Pego até ônibus sozinha para o Centro”, encerra.
Domingos José Alves, colega de classe de Dona Ione, era um dos que estavam fazendo o Bolsa Familia. “Eu não consegui minha aposentadoria e nem estou mais podendo trabalhar, então vou tentar isso aqui”, explica o paraibano de 67 anos. “Sessenta e sete de vida, na carteira eu tenho 63, por isso que não consigo me aposentar”. Seu Domingos mora no Rio de Janeiro já há quinze anos e veio a convite de uma de suas cinco filhas, que havia conseguido trabalho na cidade. “Eu morava a doze léguas de João Pessoa. Era muito dificil tirar documentos lá na roça, aqui mesmo longe do Centro as coisas são mais fáceis”, conta ele, entrando em seguida para uma das salas da Fundação Leão XIII, responsável pelas documentações e auxílios.
No meio daquelas filas desorganizadas, esbarrei em Erica Jacinto, de 18 anos. O corredor de salas da escola estava tomado por pessoas que se subdividiam em filas para identidade, carteira de trabalho, processos jurídicos, bolsa familia e corte de cabelo. Erica estava na fila da carteira de trabalho. “Já acabei meus estudos”, conta a ex-aluna do Colégio Estadual Vila de Cava. “Estou fazendo um curso de petróleo e gás aqui no Centro de Nova Iguaçu e quero tirar a carteira de trabalho porque não dá para ficar sem emprego. Por mim pode tanto ser na minha área quanto em alguma loja”, explica sorridente a menina que quer ajudar sua mãe.
Se eventos em geral são avaliados por números, com absoluta certeza este organizado pela Secretaria Municipal de Educação foi um sucesso. A multidão se subdividia não apenas nas salas de aula como também nos mini-stands da Secretaria Municipal de Saúde, que fazia aplicação de flúor nas pequenas e impacientes crianças, além de exames de glicose, pressão arterial, aplicação de vacina. As crianças eram sorrisos à parte. Empolgadas com as oficinas de desenho ou o espaço para andar de skate, não sabiam para onde correr, ou pular.
Bem no centro do pátio estava a grande roda de capoeira, que agitava ainda mais o evento, reparei em uma jovem capoeirista sentada. Seu nome é Daniele Oliveira. Moradora do Riachão e aluna do CIEP Brizolão 387 – Hans Christian Andersen, onde conheceu a capoeira. “O grupo trabalha no Escola Aberta”, explica ela enquanto embala o sono de um lindo e cansado menino de três anos. “A capoeira melhorou muita coisa na minha vida. Antes eu era uma maluca, hoje eu tenho uma família”.
A família do esporte, no caso de Daniele, vai muito além dos laços afetivos que se cria com um grupo do qual se faz parte. A jovem que vivia com o pai, antes de um desentendimento, estava prestes a ir morar na casa da avó em Queimados, deixando amigos e escola, até que recebeu o convite de morar com seus mestres. “Já moro com eles há dois anos”, diz ela, que prefere não relembrar seu período antes da capoeira. “Eu ajudo eles ficando com as crianças, o que não é nada perto de tudo que eles já fizeram por mim”, diz emocionada. “Capoeira é um esporte e mais do que qualquer coisa é um treino pra vida. Eu acho que todo mundo deveria fazer algum esporte para tomar juízo nessa vida. Com a capoeira eu aprendi, principalmente, a ter responsabilidade”, finaliza.
O dia contou também com a apresentação do coral Vozes do Silêncio, da Escola de Educação Especial Paul Harris de Nova Iguaçu. O coral, formado por 12 crianças com deficiência auditiva moderada e grave, já existe há mais de dois anos e “auxilia, entre muitas outras coisas, na construção da identidade e da autoestima desses pequenos”, como disse a diretora da instituição, Dilma de Almeida. A apresentação das crianças atraiu os atentos olhares de quem ali estava para a quadra da escola, cantando em Libras a música “Aos olhos do Pai”, da banda Diante do Trono. “A deficiência auditiva é uma das mais complicadas na minha opinião. Porque as deficiências físicas e mentais têm traços específicos e é fácil de ser notada, a auditiva não. A adaptação é muito mais difícil, além de que algumas pessoas não compreendem, pensam até que os gestos são ofensas ou brincadeiras”, diz a universitária e ex-normalista Marcele Azevedo.
“Estamos, tanto eu quanto a prefeita, absolutamente satisfeitas”, disse a Secretaria de Educação Dilceia Quintela. “Tudo deu certo. Nós queríamos promover uma ação social que unisse as secretarias e os projetos do Brasil Alfabetizado e não tinha como ser melhor”. O encerramento ficou por conta da presença da Prefeita Sheila Gama e de seus secretários, que caminharam pelo evento e assistiram à apresentação do Grupo Cultural Afro-Reggae de Jardim Nova Era. “Eu sei que já disse isso várias vezes, mas é a verdade: não sou iguaçuana, mas Nova Iguaçu é a minha cidade, é uma espécie de mãe. Fico muito satisfeita com tudo isso e com esse crescimento. Tenho certeza de que daqui a dez anos teremos ainda mais resultados positivos”, encerrou a prefeita.
O termo “ação social” foi utilizado pela primeira vez por Max Weber, um dos teóricos da sociologia com o qual tento ter intimidade. Ação social significa, pela teoria, todo comportamento cuja origem depende da reação ou da expectativa de reação de outras partes envolvidas. Efetivamente este sábado, pude ler nessas pessoas que ação social vai muito além de causa e efeito, ação ou reação. Não é um favor, não é piedade, é um exercício de cidadania. Histórias, emoções, mãos, rostos, olhares. “Ter o direito de ter direitos”. É uma ação de imediatismo sim, mas é a ação que dá a oportunidade de seres humanos, que antes dessa manhã de sábado não existiam legalmente, receberem serviços públicos ou o mínimo de atenção.
Treino para a vida
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Marcadores: Bairro Escola, Hosana Souza
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2 Comentários:
Nossa, super legal, a matéria! Fácil de ler e muito bem escrito! Parabéns.
Tbm achei linda. Minha garota!
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