As cores de Alvito

quarta-feira, 6 de julho de 2011

por Hosana Souza


Recordo-me da primeira vez em que vi Marcos Alvito. Um homem alto, magro e branco, cinquentão, parado ao lado da já conhecida imagem falante de Julio Ludemir. Estávamos em Nova Iguaçu, a minha cidade que, naquela manhã, se revelaria um pouco mais. Caminhamos para uma ação do programa da prefeitura local, o Livro Livre, os dois escritores e as duas meninas curiosas. Pois como era de se prever Jéssica Oliveira me acompanhava em mais essa aventura, ela que é minha companheira desde a infância.

O destino era a Polinter. Eu que nunca havia visitado meu primo que fora preso, entraria na cadeia por outro motivo: pela fé de que a leitura é capaz de libertar. A cada passo na subida da ladeira imaginei a dor que minha tia sentia ao visitá-lo. Recordei que na quinta-feira anterior, enquanto ia para a escola, a encontrei no ônibus, firme com sua sacola de utensílios e lanches para ele. Só ela e a esposa o visitavam. Não que a família o houvesse rejeitado. O próprio não queria que tivéssemos dele uma lembrança assim. Agradeci mentalmente por ele não estar ali, naquela Polinter. Me muni da câmera fotográfica e parti para o trabalho.

Arrisco dizer que a penitenciaria é nosso capitulo zero. Minha primeira lembrança de Alvito. A primeira lembrança de Alvito no desenho de suas cores.

Carioca de Botafogo, o único menino da casa, estudou sempre em escolas particulares. Graduação e mestrado em História pela UFF – Universidade Federal Fluminense, doutor em Antropologia pela USP – Universidade de São Paulo. O típico Zona Sul, foi aos 34 anos arrastado de sua zona de conforto. “Acho que só mudei, só fui despertar uma consciência maior para outras partes que compõem a cidade quando entrei na Penitenciária Lemos de Brito”, crê.

O professor de história antiga que entrou na penitenciária com olhar contemplativo para o novo mundo, foi mergulhado na realidade carioca de prédios aos pedaços, relações sociais singulares, presos com a imagem bem distante da de dignadade humana, grosseria no tratar dos policiais. “Uma radical mudança de perspectiva para quem vivera sempre as voltas com a poesia homérica, a democracia ateniense ou a concepção de história de Tucídides”. Alvito foi levado à história pelos Diálogos de Platão e ao Rio de Janeiro pelas mãos do amigo Marcelo Freixo. “Depois disso comecei a ir à favela e não parei mais minhas andanças”, conta rindo.

A escolha profissional começou com o sonho de ser jornalista. “Eu comecei fazendo Comunicação Social, mas nesse tempo eu percebi que adorava falar em público, que tinha certa facilidade para isso. Talvez até antes, já na escola, isso se manifestasse, mas eu não tinha consciência”, explica ele, que migrou para o que mais adora fazer na vida: lecionar. “Adoro dar aula, é a única coisa que sei fazer na vida. Em sala de aula sou um peixe dentro d'água”, revela.

Marcos dá aulas hoje apenas na UFF, concursado em regime de dedicação exclusiva, mas já trabalhou com o Ensino Médio no Colégio Raja Gabaglia em Campo Grande e no colégio Sobec de São João de Meriti. “O bom da aula é que acontece aqui e agora. É uma arte que exige improvisação; não há aula igual à outra. A sala de aula é um espaço de relativa liberdade, é possível criar. É um espaço de diálogo, de troca, de aprendizado, de sensibilidade para o outro”.

Outra mudança no estilo de vida de Alvito ocorreu há sete anos. Por influência de sua ex-mulher tornou-se vegetariano e afirma possuir a melhor receita de lasanha de abobrinha da cidade. “Mudei mais por motivos éticos – por conta do sofrimento imposto aos animais – e ecológicos – pelo fato, por exemplo, da Floresta Amazônica estar sendo destruída para plantação de soja que alimentao gado do churrasco. Cada churrasco tá queimando um pouco da floresta”, explica.

O autor de “As cores de Acari” revela, dentre as inúmeras lembranças e experiências na favela, sua primeira ida ao Candomblé. “Eu já tinha ido a Acari dezenas de vezes, mas naquela noite, enquanto ia para lá comecei a sentir uma coisa estranha. Não era nenhum fenômeno místico, era o bom e velho medo”, pontua. “Eu estava com um medo que vinha das minhas entranhas, do inconsciente. Era o medo da sociedade branca diante da cultura do outro, do negro, do escravo. Era um medo real. Eu estava tomado por ele. Quando cheguei lá e vi o terreiro todo iluminado, perfumado, cheio de folhas cobrindo o chão, uma coisa tão linda e emocionante que o medo passou na hora e se transformou em admiração, em encantamento”, completa, “Acho que para descobrir, para aprender, temos sempre que enfrentar nossos medos, seja lá de que natureza forem”.

Morador do Rocha, bairro próximo a Vila Isabel, Marcos Alvito é Flamenguista “até morrer”. Além de torcedor, pesquisador, escritor, professor e doutor, têm como principal função ser o pai da pequena Kay, de quatro anos e do futuro filósofo Heitor, de dezessete. “Como é óbvio, sou igual a qualquer pai. Logo, apaixonado por meus filhos lindos”. Mas além de toda essa “corujice”, Alvito nutre outra grande paixão: o samba, bem como outras manifestações da chamada cultura popular: o jongo, o candomblé, o samba de roda, a capoeira. “O Brasil tem uma cultura riquíssima, sobretudo devido à herança africana. Para um antropólogo é um banquete interminável e saboroso”.

Essa paixão se reflete em suas aulas, como a ministrada na última semana, 27 de junho, para os alunos do projeto Rio On Watch. O tema era a História das Favelas e foi revelado durante um passeio de pouco mais de uma hora por oito sambas e muito diálogo. “Quando eu dava aula lá em Campo Grande – no noturno – os alunos costumavam dormir. Resolvi então colocar músicas e milagrosamente eles acordaram”, relembra brincando.

Na manhã de segunda-feira, com o ar geladinho do início do inverno, Alvito iniciou suas explicações pela imagem da planta favela, originalmente da caatinga, que batizou o grupo mais forte e resistente do Rio de Janeiro. Alguns anotavam suas palavras, outros já posicionados com a câmera a registravam. Um espírito jornalístico de que tudo vira matéria, recebido de Julio Ludemir, seu grande amigo e professor do mesmo curso.

Reservei-me a oportunidade, não apenas de aprender, mas de observar Alvito em ação. Falante, sorria ao explicar. Deliciava-se com as intervenções de Valnei Succo, que exemplificava suas colocações. Os olhos brilhantes que todo o professor deveria ter, mas controlado, ritmava as batidas do próprio coração. “Sem paixão não se abre nem um picolé”, ressaltou, encerrando com uma declaração digna a explicar tamanha excelência em sala de aula: “Sou apaixonado pelo que faço. Faço com prazer, com amor”.

3 Comentários:

Linda matéria!!!
Consegui enxergar bem o personagem e me emocionar em vários pontos da matéria.
Parabéns, Hosaninha. Sou sua fã.

yasmin thayná disse...

o alvito é um charme, pena que é flamenguista. Me identifiquei com o personagem. Essa coisa de valorizar a nossa cultura é bem bacana. Me fez lembrar dos tempos primórdios onde eu carregava a bandeira do brasil na mochila e escutar o hino nacional enquanto marchava para a escola, rs. Sempre curti o nordeste e as nossas raízes que se misturam com a áfrica. parabéns, alvito. Ainda quero um "as cores de acari" autografada. Não sei onde consigo. Sucesso, hosana.

Aline Soares disse...

Meu primeiro contato com o professor Alvito foi em 2003, como ouvinte da disciplina História Oral no curso de História da Universidade Federal Fluminense. De cara um grande encantamento por aquele homem de sensibilidades social e humana ímpares...No outro semestre me inscrevi em História do Brasil III e o encantamento continuou, porém meu desinteresse momentâneo pelos estudos o fizeram acreditar que aquela minha energia de desinteresse pudesse atrapalhar o andamento das aulas, creio que por isso uma certa austeridade partiu do professor.
Saiba, Alvito, que sempre o admirei e que jamais tive a intenção de fazer pouco caso do seu trabalho, era imatura e despretenciosa quanto a minha vida acadêmica, tanto que tomei outro rumo profissional. Sempre desejei e desejo todo sucesso do mundo e espero que seu fino trato com as causas sociais continuem a dar belos frutos.

Aline

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