A receita do guia

domingo, 14 de agosto de 2011

por Jéssica Oliveira


Para escrever não existe uma receita. Não é algo que se aprenda com um manual, obedecendo religiosamente às instruções da mesma maneira que se aprende a fazer um bolo enquanto a Ana Maria Braga cita os ingredientes e o modo de preparo. 

Entretanto, é possível dizer que escrever assemelha-se a arte de cozinhar. Não se nasce sabendo, mas a prática ajuda. Obviamente algumas pessoas possuem facilidade maior ao escolher, picar, temperar e criar deliciosos pratos, maravilhando aqueles que provarão do mesmo e oferecendo o inigualável prazer da culinária.

Particularmente, sou péssima na cozinha. Nunca consigo acertar todos os importantes passos e ter a devida atenção e sagacidade quando o assunto é fogão. Sou um desastre até mesmo no preparo de um simples e rápido macarrão instantâneo. Na cozinha, só entro para lavar a louça, ajudar minha mãe descascando legumes - com extremo cuidado para não me cortar - e, é claro, comer. No entanto, sei que poderia ser melhor se me esforçasse e dedicasse algumas horas do meu dia a esta prática, mas o que posso fazer se não me sinto nenhum pouco atraída pelas panelas? Pelo menos não da mesma forma que me sinto atraída por um lápis e uma página em branco.

E é por esse motivo que me inscrevi no ciclo de oficinas O Escritor Como Guia, promovido pelo SESC Rio em parceira com a Shahid Produções Culturais. Fui seduzida pela promessa de ter um profissional da escrita falando sobre sua trajetória até a "profissão escritor", contando sobre seu processo de criação e disposto a ajudar aspirantes e curiosos como eu.

Na quarta-feira, 10 de agosto, os encontros se iniciaram no SESC São João de Meriti com a participação da romancista Tatiana Salem Levy, autora do livro A Chave de Casa (Editora Record). Portuguesa de nascimento, mas carioca de criação, Tatiana é vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2008, na categoria Autor Estreante. Alguns dúvida quanto à qualidade da oficina daquela agradável tarde?


Palavras lapidadas
Ao chegar 20 minutos atrasada, encontrei o pequeno grupo composto por diferentes perfis falando justamente sobre o ledo engano que algumas pessoas nutrem ao achar que há um método prático para escrever. E assim, num clima informal, a escritora seguiu o protocolo que pareceu suceder naturalmente, e falou um pouco sobre sua trajetória.

Imagem: reprodução

Filha de uma jornalista e de um professor de filosofia, a dona de longos cabelos cacheados que faz dueto com vistosos óculos vermelhos conta que nasceu em meio aos livros. "Como qualquer criança, preferia brincar ou assistir TV, mas minha mãe, me comprava com balas. Ela deixava livros para eu ler e quando ela chegava em casa, eu tinha que contar a ela a história que li para ganhar minha bala", relembra, ressaltando que mantém esse vício até hoje. "Quando cheguei aqui, a primeira coisa que fiz foi comprar uma bala".

Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), Tatiana afirma que é do tipo de autora que escreve 600 páginas para publicar um livro com 200. Nutre um hábito diário de retornar à sua escrita, lapidando cada palavra como se fosse um diamante, mudando quase que desesperadamente a forma com que se expressou. "Eu preciso de solidão e silêncio para escrever. Reescrevo, reescrevo, reescrevo até não poder mais. E saio cortando tudo, gosto de falar muito com menos", cita, apontando um dos capítulos de seu romance que é composto por apenas um pequeno parágrafo. Exemplo perfeito de sucintez.


Como escritora, Tatiana revela que abandonou o carro há cerca de sete anos e só anda de transporte coletivo. "No carro a gente não vê a cidade, só fica concentrado no trânsito. Eu gosto de ver as pessoas, de sentí-las, trazê-las pra mim. Isso é muito importante para o escritor".Ela ainda comenta sobre a atenção que um escritor precisa ter quanto ao que ocorre ao seu redor. Para Tatiana, esse tipo de artista deve ser sempre um estrangeiro com olhos de atenção e curiosidade.

"A Chave de Casa" é, segundo Tatiana Salem Levy uma obra de auto-ficção. Sua própria história se entrelaça à invenção que dedicou à personagem central, misturando memórias, imaginação e respostas para seus questionamentos. Sua relação com essa imaginação inventiva é preciosa,. A autora acredita que o papel desse mecanismo de escrita reconstrói espaços deixados pela história da maneira que bem desejar.

Após duas horas de bate-papo, uma breve pausa para o lanche. Um pouco de suco de manga, biscoitinhos e conversas aleatórias, por favor, garçom. Satisfeitos, voltamos para a geladinha sala do segundo andar do SESC e encontramos pranchetas com algumas folhas em branco sobre as cadeiras azuis dispostas em círculo. Havia chegado a hora de mostrarmos o que sabíamos.

Como forma de nos estimular, Tatiana projetou duas pinturas num telão e nos pediu para escolher uma delas. Tendo feito isso, a atividade foi dada: deveríamos interpretar o quadro, escolhendo um dos quatro personagens - ou inventando mais um - e escrever um texto digno de início de romance. "Tem gente que escolhe livro a partir das primeiras páginas, então o começo deve ser muito bom", explica.

30 minutos de silêncio e concentração. Sentei-me no final da sala para tentar escrever alguma coisa e o tempo pareceu voar enquanto "rabiscava" aquela folha de ofício em branco. O relógio de Tatiana enfim nos avisara que era hora de apresentarmos o que escrevemos e assim, um de cada vez, leu seu pequeno início de romance fantasioso e nossa guia nos presenteou com comentários e críticas construtivas.


Certamente uma experiência bastante construtiva e memorável. Dessa forma, após ser guiada por uma escritora tão talentosa quando Tatiana Salem Levy, apresento meu humilde e rápido texto, intitulado "O café". Você também pode passar pela mesma experiência que eu e outras pessoas passamos. Basta de inscrever gratuitamente pelo telefone no flyer.

"Naquela manhã, o café era quente e os pães, macios. As velhas vidraças permaneciam embaçadas e os beirais de suas janelas ainda guardavam a poeira que insistia em fazer morada naquele ambiente tão distinto. Os bules eram lustrosos em cerâmica de cores e tamanhos variados, despretensiosamente dispostos sobre a gelada mesa de mármore que, por sua vez, fazia trio com duas velhas cadeiras de madeira maciça. Nada mudou depois da manhã de uma data já esquecida, quando a primeira xícara de café fora servida. Tudo está como era desde o princípio. A decoração se mantinha da mesma forma que o dono, um senhor cuja história pouco se sabe, um dia idealizou. Ou não. Talvez cada item que compunha aquele cenário fora alocado de maneira desproposital e ingênua.

No interior da loja, o espaço ainda era tomado pela sonolência e preguiça das primeiras horas do dia de todos que a visitavam religiosamente para dejejuar. Naquela pequena construção de poucos metros quadrados, o abajour, herança de não se sabe quem ao pouco afamado proprietário do lugar, se funde às mesmas luzes que emanam de cada cliente. Discretamente, toma seu lugar num canto qualquer para dar um pouco de cor de vivacidade às conversas despretensiosas. É certamente ali que se encontram as moças solteiras à procura de rapazes e casais fadados á rotina diária de sentarem frente um ao outro e conversarem sobre o nada. repetidamente, dia após dia, como se fosse a pintura em um velho quadro."

1 Comentários:

Vinicius Vieira disse...

Eu gosto tanto do jeito que você lida com as palavras, Déh. "O Café" é um belíssimo começo de um romance. A forma que você escreve é direta e um mimo.
Ah, me interessei em conhecer essa autora.
Belíssima matéria.

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