Mas poderia ter entrevistado. Poderia começar este texto anunciando a suposta entrevista concedida pelo famoso documentarista, relatando com riqueza de detalhes o encontro e as falas inéditas. Faria uso do poder da palavra não só para inventar uma situação, mas para convencer sobre sua veracidade. A sedução de quem conta uma história e a potência do falso tanto no cinema quanto no próprio discurso verbal foram os pontos que mais inquietaram os universitários que ontem à noite assistiram à palestra de João Moreira Salles, no campus Tom Jobim, da Universidade Estácio de Sá.
“O documentário é uma invenção do diretor e do personagem. Destas duas invenções sai o filme. E o filme não é uma verdade”, ousou dizer o diretor, tomando como exemplo o filme “Jogo de Cena”, do qual foi produtor executivo: “O que o Coutinho estava querendo dizer é que o que interessa não é a verdade factual do que está sendo dito, mas sim a paixão com que se conta”. Em “Jogo de cena”, exibido na última terça-feira no Cineclube Digital, Eduardo Coutinho coloca o espectador diante de mulheres e suas respectivas narrações. Não fosse o fato de que algumas delas são atrizes popularmente conhecidas, identificar uma portadora real das memórias contadas seria uma tarefa impossível. Aliás, a dificuldade aparece de fato, quando fica claro que estamos diante de um jogo – que também envolve atrizes pouco conhecidas –, onde a verdade é o que menos importa. O que vale é a forma, não o conteúdo. “Não há bom filme que não pense sobre si mesmo”, garante o documentarista, aconselhando aos risos: “Não confie na gente”.
Viagem no tempo
Ao contrário do irmão “Waltinho” – o cineasta Walter Salles -, durante a juventude, João Moreira nunca demonstrou uma predisposição profissional pela sétima arte. Por não saber o que fazer, cursou economia na PUC Rio – a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –, onde alega ter sido um dos alunos mais aplicados. “Eu sou de uma geração em que não se tinha muita conversa entre pais e filhos sobre o que ser quando crescer”. Foi então que Walter chegou do Japão com a mais alta tecnologia audiovisual: uma Beta Cam. “Ele foi a primeira pessoa do Brasil a usar a câmera”, revela João Moreira, enfatizando que o período em questão situa-se em meados da década de 80. Walter recorreu ao irmão para que o ajudasse a organizar as 80 horas de material bruto filmado no país oriental. Nasceu daí, em 1985, a série “Japão, uma viagem no tempo”, que foi exibido em 5 programas na extinta TV Manchete. “Daí eu não parei mais”, conta João, que passou a trabalhar em documentários a partir de temas distintos.
Em 1992, o documentarista estava na África, onde morou por um ano, ministrando aulas sobre vídeo, voluntariamente, numa ONG. “Lá eu descobri duas coisas: que eu gostava de dar aula e que gostava de medicina, mas eu não tive coragem de retornar ao Brasil e começar do zero”, lamenta ele, que aos 26 anos se considerava um “senhor quase no fim da vida”. O momento escolhido para regresso ao país não poderia ser mais inadequado para um cineasta: com a extinção da Embrafilme, durante o governo do presidente Collor, a produção fílmica sobrevivia das demandas da publicidade. Não escaparam da tragédia nem mesmo produtoras já consagradas, como a “O2” e a “Videofilmes” – a segunda criada em 1987 pelos “irmãos Salles”. “Durante três ou quatro anos eu fiz muita publicidade. E eu acho que todo diretor deveria passar por isso, até mesmo em TV. Aprendi a lidar com orçamentos e limites criativos”, expõe João Moreira, que das sobras de película de uma propaganda, produziu o material de uma das obras mais importantes de sua filmografia: o documentário “Santiago”. Utilizando o filme de 16mm em preto e branco, a experiência começou a ser feita dentro de sua própria casa, em entrevistas com o mordomo com quem conviveu diariamente por 18 anos. “Eu não consegui montar. Deixei o material de lado por uns 14 anos”, lembra.
A responsabilidade entregue nas mãos daquele que conta a história de um personagem real fez com que João Moreira Salles questionasse sua própria postura como entrevistador. Embora o “poder” pertença claramente àquele que está munido com câmera e título de “diretor”, há um dever ético a ser cumprido na produção de um documentário. “Santiago é um documentário que critica o documentário que eu fiz anos atrás”, confessa Salles, apontando o erro no autoritarismo com que tratou seu personagem durante as entrevistas. “O Santiago é um personagem que criou uma fábula sobre si”, pontua, colocando em questão sua própria verdade.
A forma é mais importante
Numa das crises que lhe acometem a cada dez anos, João Moreira Salles resolveu montar o material, tendo como princípio a máxima de que forma é mais importante que conteúdo. “Fazer um filme sobre miséria, por exemplo, de forma inócua não interessa. O que interessa é mostrar de forma que a pessoa que assista diga: ‘Eu nunca pensei nisso’”, demonstra o diretor. Dando estabilidade ao documentário, seu próprio passado deixava de ser “estrangeiro”. “Meus pais tinham morrido, a casa estava abandonada, o Rio de Janeiro não era mais o mesmo. Estava tudo à deriva: o Rio, a casa e eu”.
A mesma carreira que garantiu inúmeros prêmios e realização profissional gerava um grande incômodo em João Moreira: os grandes intervalos entre uma produção e a seguinte. Para a realização de um filme, seja ele ficcional ou documental, são necessários, entre outros pontos, a produção de um projeto para captação de verba, formação de equipe e a concepção de uma estética. É preciso uma pré-produção colossal para se contar algo, que por outros meios poderia ser contado com um lápis e um bloco de papel. E, segundo o cineasta, eis a grande vantagem do jornalismo. “Eu queria ter uma rotina, uma obrigação. Isso me angustiava muito. E eu também queria ler uma revista como a Piauí, mas no Brasil o jornalismo tomou outro caminho”, explica Salles, sobre a publicação que fundou em 2006, a partir da colisão entre três jornalistas qualificados e um grupo de recém-formados em Comunicação Social. Para a revista, na qual exerce as funções de repórter e editor da sessão “Esquinas”, ele afirma usar dos mesmos métodos aplicados na construção de um documentário: a observação das pessoas. “A Videofilmes e a Piauí ficam no mesmo prédio. Eu subo dois andares e sou documentarista, desço dois e sou repórter”, brinca.
A Piauí, que nunca teve sequer uma reunião de pauta entre seus funcionários e não possui editorias, recebeu o nome unicamente pela sonoridade exercida por suas vogais. “Nenhuma palavra no português tem tantas vogais juntas, a não ser piauiense. Por causa do nome a gente meio que ficou obrigado a cobrir o Piauí. E eu tenho certeza que é a única revista que cobre o estado com uma certa regularidade”, diz numa mistura de graça e carinho. Bem como a escolha da palavra, o mascote pinguim não esconde atrás de si nenhum conceito mirabolante. É porque é, e pronto. Ilustrou a primeira capa da revista e acabou ficando.
Sendo ouvido por uma plateia repleta de estudantes de comunicação social e espalhados por 73 unidades da universidade, João Moreira Salles não poupou dicas para os futuros jornalistas e documentaristas, a começar pelo quesito “curiosidade” – considerado por ele como essencial. “Não há nada pior para um entrevistado do que quando o entrevistador aparece com sete perguntas prontas. Uma boa entrevista tem que ir por lugares que não foram pensados”, decreta ele, ironizando a falta de interesse demonstrada por alguns colegas de ofício. “Eu posso dizer que estou abrigando o Bin Laden na minha casa, que o cara não vai estar ouvindo. Depois de 10 segundos da fala do entrevistado, já vai estar preocupado com a próxima pergunta e dirá: ‘Então, você já tem um próximo projeto?’ Por que o Coutinho nunca cumpre pauta? Porque o que interessa é a deriva. É por isso que eu adoro quando não há mais o que dizer. Porque é aí que começa. Jogue fora os mapas e entenda o que a pessoa está querendo dizer naquele dia. Volte com uma coisa que ninguém nunca tenha ouvido”, orientou, encorajando o fomento de múltiplos interesses profissionais, como é seu próprio caso: “Eu não sei muito de uma coisa só. Eu sei um pouco de várias coisas. O mercado de trabalho hoje em dia tende a gostar de pessoas que façam coisas diferentes. O que eu acho fundamental é encontrar um denominador comum”, finalizou, recebendo uma “verdadeira” enxurrada de aplausos.
Palestra no campus Tom Jobim, da Universidade Estácio de Sá, no dia 12/08. |
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