Boa vontade com tudo

terça-feira, 7 de junho de 2011

por Hosana Souza


Quem vê Marcele Moreira Azevedo correndo atrasada pela rua não imagina a ligação que a jovem estudante de 20 anos tem com a educação em Nova Iguaçu. “É uma missão muito grande ser tema de uma matéria do CulturaNI”, diz com um sorriso tímido a menina dos longos cabelos castanhos. Marcele é mais conhecida pelos amigos como Moraze, que é a união de Moreira e Azevedo. Mora em Morro Agudo “desde sempre” e é filha do eletricista/pedreiro/encanador Francisco de Assis com a Dona de Casa Edi Moreira.

Como caçula de três irmãs teve suas regalias, o menor é sempre mais paparicado, porém foi também a exceção da casa estudando sempre em escola pública. “Minha irmã mais velha estudou na particular até a oitava, a do meio até a quarta, eu só escola pública se tivesse a quarta nem estudaria”, brinca. O ensino fundamental foi cursado na Escola Estadual João Much, próximo à badalada praça do skate em Nova Iguaçu. “Tenho muitas lembranças boas de lá e muitos amigos com quem falo até hoje. Tive sorte de estudar em escolas públicas boas aqui na cidade”, diz.


A maior parte das crianças da Rua Matilde estudava na mesma escola, o que facilitava o revezamento de acompanhantes. “Embora o bairro fosse residencial, minha mãe morria de medo, fui acompanhada à escola até a sétima série”, explica. “Cada dia ia alguém: meu tio, minha mãe, minha vizinha. Sempre um adulto pegando o ônibus com aquele bando de crianças”, relembra. O revezamento de responsáveis é comumente observado nos horários de entrada e saídas das escolas em Nova Iguaçu; essa prática traz um misto de segurança, pois a pessoa que está com seu filho “é de confiança” com economia. Afinal, é muito mais barato revezar que, por exemplo, pagar uma Kombi para levar e buscar a criança.

Marcele partiu da pequena escola do ensino fundamental para o tão famoso na cidade curso normal. “Eu passei a ir sozinha para a escola e ainda a usar todo aquele uniforme, era muita responsabilidade”, lembra. “Eu tinha quase que fazer uma lista, broche: ok;lenço: ok; estrela: ok. Meias? Cadê as meias?”, brinca. A escolha pelo curso se deu por influência da irmã do meio Rafaele e também por ser um curso profissionalizante. “Eu ficava pensando: ‘e se eu não conseguir entrar na faculdade?’. A formação geral prepara mais ou menos pro vestibular, mas especificamente não prepara para nada. Com o normal, pelo menos eu poderia trabalhar”, conta. “Fora que a Rafa tinha feito normal, então minha mãe já conhecia a escola, as pessoas”, explica ela, que estudou no Colégio Estadual Arruda Negreiros.

Bagagem inesquecível
A bagagem do curso normal é inesquecível, principalmente suas incontáveis horas de estágio. Por ele Marcele ingressou no Programa Bairro Escola. “Me mandaram para uma escola lá no Cobrex, absurdamente longe da minha casa. Mas era muito bacana, principalmente no início, quando as coisas realmente funcionavam”, diz. “Nós tínhamos formações semestrais, eu era do núcleo de aprendizagem, nós tínhamos parceiros, que são os locais onde as crianças ficavam, havia toda uma estrutura. Depois, com a troca da coordenação, com mudanças de secretária, o projeto foi ficando muito bagunçado, os parceiros desistindo. No fim das contas restamos eu e um outro estagiário a semana inteira com as crianças”, lamenta.

Moraze participou do Bairro Escola nos anos de 2008 e 2009, sempre na mesma escola, a Escola Municipal Herbert Moses . “No geral era mais estressante que divertido. Faltavam estagiários, as crianças me faziam surtar, mas era muito bom. Vê-las sentadinhas lendo era muito lindo”, confessa. Marcele se lembra de histórias engraçadas nas peripécias de tentar manter o programa na escola. “Em meados de 2009, nós só tínhamos um parceiro, que era um clube. Imagine, manter quase cem crianças sentadas tendo reforço de redação, por exemplo, com todo aquele espaço para correr?”, lembra. “Mas foi muito pior quando perdemos até esse parceiro. Tinha uma sala na escola em que tudo que não era mais útil ficava jogado, cadeira velha, mesa velha, livro velho, eu e as crianças”, diz. “Eu ficava imaginando que a qualquer momento alguma daquelas crianças ia se machucar, ia pegar tétano, sei lá”, confessa ela, que entre os trancos e barrancos nunca abandonou o projeto. “As horas de estágio acabaram, mas eu resolvi me manter até o final, do contrário seria menos um”.

O professor tem na vida de uma criança um papel tão importante que é quase amedrontador. “Que me desculpem todas as outras profissões, todos eles são importantes, mas o professor tem uma influência na vida da gente que não tem tamanho. Ele pode te ensinar a ler e ter prazer com isso, ou ele pode simplesmente fazer o mais ou menos e você vai levar a vida no mais ou menos porque não teve uma boa formação”, confessa Marcele, que tem medo de exercer a profissão. “Eu tive professores muito bons. Os que mais marcaram foram um de educação artística e um de língua portuguesa. Por causa deles hoje eu faço desenho industrial e leciono literatura. O brilho nos olhos deles me fez aprender. Não sei se quero lecionar e ter essa responsabilidade, muitas vezes nós somos engolidos pela rotina, tenho medo de ser indiferente ou, pior, ter um papel negativo na história deles (alunos)”.

A menina cuja cor favorita é o verde conseguiu três aprovações no vestibular: letras na UFRRJ e na UFRJ e desenho industrial na UERJ, curso no qual está no terceiro período. “Fiquei com medo de tentar as áreas de licenciatura pelo “poder” que um professor tem. Mas hoje, trabalhando com o pessoal do pré, voltei até a pensar no vestibular em letras”, conta. Ex-aluna do Projeto Pré-Universitário da UFRJ, o CPU-NI, Marcele traz ótimas lembranças de mais essa passagem na educação iguaçuana. “O CPU era muito bom, até hoje converso com professores, ajudo na aplicação das provas do início do ano”, diz ela, que conheceu o uniforme laranja através de amigos da escola que já faziam o curso. “É um projeto que dá certo, por mais que tenha tanto tempo e isso que me deixa tão feliz e admirada. As pessoas que trabalham lá têm sempre uma boa vontade gigantesca com tudo, e isso anima muito”, diz.

Marcele trabalha, atualmente, em uma parceria entre a UERJ e a Secretaria de Ações Especiais e a Secretaria Municipal de Educação. Todos os sábados, na Escola Municipal Monteiro Lobato, são realizadas aulas intensivas para dois grupos, um pré-técnico e um pré-vestibular. “Estou lá desde o início do ano com duas turmas, de sessenta alunos cada, dando literatura”, explica a estagiária, que está com seus três meses de bolsa-auxilio atrasados. “O clima de um pré-vestibular é totalmente diferente. Um cara que se dispõe a estudar o sábado o dia inteiro realmente quer alguma coisa, fiquei com muito medo, mas me dediquei a eles e estou aprendendo muito. São só quarenta minutos, mas as aulas são muito boas, é muito mais que a bolsa. Embora eu tenha fé que ela sairá”, encerra entre risos.

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