Frio na barriga

quarta-feira, 22 de junho de 2011

por Pedro Felipe Araújo

Querido diário

Dia 15 de junho de 2011

Hoje acordei cedo, mas demorei a levantar da cama. Fiquei deitado por um tempo me perguntando como o dia terminaria. Finalmente chegara o dia do protesto que faríamos contra as Lojas Americanas, no centro do Rio, mas mesmo sendo eu um fervoroso militante da EDUCAFRO, não pude deixar de sentir medo. Era o segundo protesto do qual eu participava, mas era minha a responsabilidade de liderar o manifesto.

Confesso a você, meu caro diário, que por vezes me revirei angustiado na cama, pensando nas possíveis repressões que o grupo que eu assumiria talvez pudesse sofrer e senti meu estômago revirar ao pensar que eu pudesse ser o responsável por qualquer coisa que lhes acontecesse.


Respirei fundo. A lembrança do motivo do nosso protesto veio à memória: no mês de abril, os seguranças das Lojas Americanas de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, acusaram indevidamente um cliente negro de roubar um ovo de páscoa que ele comprara momentos antes em uma outra loja. Mesmo depois de mostrar a nota fiscal, ele foi coagido sem chance nenhuma de defesa e foi brutalmente torturado dentro da loja até assumir um crime que ele não cometeu. Essa violência incabível rendeu a um homem inocente não menos que um nariz quebrado, além de comprometer sua visão. Além dessa lesão corporal, consigo imaginar o que deve ser para um pai de família ter de passar por essa humilhação e esse preconceito, mas só imaginar porque saber, de fato, seria impossível – ou não, uma vez que ninguém, branco ou preto, rico ou pobre, está livre da possibilidade de ter seus direitos brutalmente violados.

A memória cavou mais fundo e trouxe com a lembrança toda coragem que veio acompanhada por uma dose imensurável de indignação, quando eu soube o que havia acontecido. Levantei, tomei banho e me arrumei. Sussurrei um “Eu amo vocês” aos meus pais que ainda dormiam na cama e então, certo de que estava pronto, saí portão afora, com a certeza de quem caminha para fazer aquilo em que acredita.

A viagem de ônibus foi longa, me deu bastante tempo para pensar no que poderia fazer e em como fazer. Tinha que tomar muito cuidado com as decisões sobre o nosso ato de cidadania, afinal poderia ser mal interpretado. O Rio de Janeiro vive hoje uma fase muito importante, querido diário. Os bombeiros deram um passo importante para a história do nosso povo, que começa a acordar para o poder que tem. Aos poucos a nossa gente está percebendo que temos o direito de reivindicar aquilo que consideramos justo e que o governo serve a nós, não o contrário. No entanto, o momento nos era favorável, mas a recente represália ao movimento dos bombeiros era muito assustador para um pequeno grupo estudantil.

Quando cheguei ao ponto de encontro minha coragem sofreu um novo golpe. Das dezenas de pessoas haviam se comprometido, apenas quinze pessoas apareceram, um número muito menor que o esperado para a dimensão que esperávamos. Como militante, cidadão e líder, confesso ter ficado muito triste com o baixo número de manifestantes, mas isso não foi esfriou meus ânimos. Estava absolutamente determinado e faria o protesto mesmo que fosse gritar por justiça sozinho.

Pegamos nossas bandeiras, faixas e megafone. Amarramos fitas vermelhas em nossos braços, para simbolizar o apoio que dávamos aos bombeiros, afinal também éramos solidários à causa deles. Deixamos a sede da EDUCAFRO entoando nossos gritos de ordem que dias antes me pus a escrever com muita atenção na métrica e no impacto das palavras: “Americanas, preste atenção: com violência não se faz uma nação”, “Americanas, é bom saber: o povo unido é bem maior do que você”.

Saí à frente, falando ao megafone, explicando porque estávamos protestando. Como você bem sabe, esta foi a terceira manifestação que fizemos contra as Lojas Americanas. A primeira foi em São Paulo, a segunda em Brasília e finalmente agora o protesto chegava ao Rio. Como fiquei feliz ao ver pessoas nos apoiando e se juntando ao grupo que marchava para a frente da loja. Pelo caminho conseguimos depoimentos de pessoas que também sofriam descriminação, como a Sra. Gesilane, que contou que também foi discriminada em uma loja da rede. “Eles me puseram para fora porque eu estava de chinelos de dedo”, desabafou ela com a voz embargada.

Finalmente chegamos à frente da loja e vimos os seguranças se aglomerarem ante as portas. A loja começou a usar o alto-falante para abafar os sons do nosso protesto, mas era tarde. Agora já éramos quase trinta e a imagem dos seguranças não nos intimidou. Panfletamos, gritamos e discutimos políticas de igualdade racial e então finalmente o gerente acionou a polícia. Direi a você, meu amigo diário, que embora esperássemos pela chegada dos policiais, ver os carros chegando com as sirenes ligadas me deu frio na barriga, mais por ansiedade que por medo, afinal estávamos ali em um protesto pacífico e a liberdade de expressão é garantida pela Constituição.

Para minha surpresa, ao invés de nos reprimir, os policiais fizeram a segurança de todos os manifestantes. Sinceramente acho que ver as tiras vermelhas amarradas em nossos braços acalmou os policiais, que também apoiavam os bombeiros. Quanta felicidade! Nada mais poderia nos intimidar.

Eram quase cinco horas da tarde quando decidi dar um passo ousado: adentrar a loja com nossas bandeiras e entoar o hino nacional brasileiro dentro da própria loja. Certamente você me perguntaria o porquê, mas eu sentia que faltava ainda algo mais impactante no movimento e, tendo eu a minha coragem potencializada por toda aquela situação que me era favorável, chamei a um canto meu amigo Renato, estudante de direito, para negociar com o gerente, enquanto instruía minha amiga a preparar nosso grupo para entrar.

Com o gerente, negociei o fim do protesto em troca de um breve período dentro da loja, onde pudéssemos executar o hino nacional. Obviamente ele permitiu, a fim de parar logo o protesto e assim fizemos: entramos com bandeiras e faixas em mãos, nos misturamos aos clientes e então começamos a cantar.

Direi que este momento talvez tenha sido um dos mais marcantes da minha vida. Dali de onde eu estava, tive o prazer de ver que os clientes das “Americanas” também se puseram a cantar, bem como os policiais que foram chamados e, para minha surpresa, um pequeno grupo de bombeiros fardados que se aproximaram e também participaram destes instantes finais do protesto. Os gritos dos bombeiros e do nosso grupo pedindo por justiça se repetiram três vezes e então, com uma sensação indescritível de dever cumprido, deixamos a loja com quase 50 manifestantes.

Agora, bem no finzinho da noite, antes que eu me sentasse para escrever como foi meu dia, recebi um telefonema da sede da EDUCAFRO, onde a coordenadora geral da instituição, no Rio de Janeiro, Rita de Cássia, contou a repercussão do nosso ato. Além das dezenas de pessoas que procuraram a sede para fazer parte do movimento, conseguimos uma audiência com o coordenador-geral das Lojas Americanas em Brasília, para o dia quatro do mês que vem, onde discutiremos os protestos e sua causa.

O dia de hoje ficará gravado para sempre em minha memória por todas as conquistas, mas o que mais marcou foi saber que contribuí para alguma mudança para melhor, em algum lugar. O que poderia ser apenas um dia qualquer, deu frutos que talvez nem eu esperasse, virou história, foi muito mais que uma página em branco em meu querido diário...

22 Comentários:

Marcelle Abreu disse...

Matéria Maravilhosa. Me emocionou, de verdade. Parabéns pela luta e pela maneira que escreve. Belo texto!

Crixlaine Lima Silveira. disse...

Sempre adoro ler as matérias que o Pedro escreve... São escritas perfeitamente bem, e sempre deixa no ar algo marcante e inspirador.
São relatos assim que mostra que nós brasileiros devemos sempre lutar pelos nossos direitos, e não devemos abaixar nossas cabeças diante das situações.
São essas atitudes que mudam e melhoram o país onde vivemos, fico feliz em saber que existe uma sede como a EDUCAFRO no Rio de Janeiro, e ainda mais feliz por existir alguém que escreve tão bem como o Pedro e ainda luta com todas as forças a cada dia, Parabéns continue assim. Beijos e sucesso!

Déh disse...

Linda matéria. Linda iniciativa. Parabéns.

Luany (M, Musa Negra) disse...

Nossa que lindo, li para minha mãe e ficamos muito felizes com tanta garra e determinação, parabéns, continue assim e saiba aproveitar muito, com saúde é claro, parabéns mesmo, só que já sofreu preconceitos é quem sabe do que você fez, lutar por nossa dignidade não é mole não, fica com Deus, sorte SEMPRE.

Exculachou!!!!
Me emocionei calma ai que vou comprar um lencinho, mas não nas loja Americanas. Na moral nem as barras de chocolate 3 por dez pratas não vai mais rolar.Esse será o meu protesto!!!

Lucas Xavier Cavalcante disse...

Nem sei o que comentar, de verdade. Parabéns, tanto pelo texto, quanto pela ação.

Pábulo Soares da Silva disse...

Nossa, que texto.
Parabéns, pela iniciativa de vocês e por você escrever assim. Bem legal o post.

Clint Barton disse...

Hm.... Parabéns pelo texto e pela iniciativa.

Allan disse...

Que iniciativa, nem parece ser real, mas é real sim, e isso porva que nós brsileiros não desistimos nunca, parabéns pelo texto, gostei muito.

Anônimo disse...

Muito bom , adorei , continua assim que vai poder ir muito mais além do que qualquer um , você tem potencial sério mesmo gostei mais porque são bem orginiais e você coloca um tipo de sentimento e o ao mesmo tempo algo que predi a atenção , não é bom e ainda melhor ... Muito bom fera.

Lucas. disse...

aí, sem palavras escreve muito, parabéns.
ótima iniciativa, continue assim...

Kaius disse...

Muito boa a matéria, parabéns pela iniciativa.

Nanduu :D disse...

Me emocionou muito!
adorei ler isso.
emocionante, créditos à PEDRO FELIPE ARAÚJO tchê!

anderson disse...

Parabéns a iniciativa, são poucos hoje assim... Sucesso!

Anônimo disse...

É de arrepiar. Muito bem escrito, uma reportagem que parece narrativa e que informa, emociona e faz pensar. Muito bem escrita. Parabéns ao jovem Pedro Felipe Araujo, se mostrou não só um bom jornalista, mas um cidadão exemplar e um autor talentosíssimo. Parabéns

By: Eliane Gomez Sirqueira

Anônimo disse...

Parabéns a iniciativa, são poucos hoje assim... Sucesso!

Anônimo disse...

Muito sem lógica isso escrito.
Veja bem, um rapaz que ainda usa fraldas jamais chegara e assumir a dianteira de um suposto moivimento contra as lojas americanas.
ler isso foi de doer.
E me diga rapaz, como que ninguem ficou sabendo desse seu movimento? nenhum jornal, nem televisao noticiou a sua fasanha.
Parabens... vc merece

Pedro Felipe Araujo disse...

Obrigado pela crítica, senhor anônimo e a pergunta é a mesma que faço às redes de comunicação social. Pergunto-me também porque o caso da agressão também não teve maior espaço na mídia... Quanto à outra pergunta: Sou militante da EDUCAFRO há três anos, não cheguei em um dia para protestar no outro. Agradeço a crítica e espero ter respondido a algumas questões...

Agora me parece muito sugestivo o fato de ter postado como um leitor anônimo porque, visto que não citei minha idade no texto, imagino que me conheças ou que tem habilidades de clarividência fantásticas

Lucas Xavier Cavalcante disse...

Esses anônimos sempre dando um show de português. Façanha, rapaz. Façanha.

sua iniciativa foi ótima , mas eu posso imaginar o como você se sentiu com essa responsabilidade nas mãos,eu no seu ugar fumaria um maço de cigarro por horas,rs! Parabéns pela matéria.

yasmin thayná disse...

tem que mobilizar mesmo. isso me deu saudade do movimento estudantil.

Raize Souza disse...

Sou tua fã!Amei teu texto, vem simbora estudar na rural vem! kkkkk

Só fiquei arretada com uma coisa: pq não me chamou pro protesto? No próximo avisa!

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